
Presidente Lula discursando na ONU - créditos: Ricardo Stuckert / PR
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22-02-2025 às 0828
Ilder Miranda Costa (*) – Recomendação de leitura em voz alta
Há dois tipos de Lulas, o tradicional e o moderno.
Lula não é, culturalmente, garanhuense, não tem trejeito de pernambucano, não tem sotaque nordestino e, de Santo Antônio do Jacinto-MG para cima, não se sente à vontade. Lula é próprio da urbe vultosa povoada por gente originária de muitos lugares, como é o caso dele mesmo, que, desde os onze anos de idade (1956), está na Região Metropolitana de São Paulo.
Lula é, culturalmente, sudestino, tal como o demonstra seu gosto musical. A trilha sonora de Lula, o Filho do Brasil conta com três músicas escolhidas por ele. Uma delas é Lejanía (1937), guarânia de Herminio Giménez (1905-1991), cuja versão brasileira de José Fortuna (1923-1983) e Pinheiro Júnior (?) foi interpretada por Cascatinha (Francisco dos Santos; 1919-1996) e Inhana (Ana Eufrosina da Silva; 1923-1981) e recebeu o nome de Meu Primeiro Amor (1955); mas Lula prefere-a nas vozes de Zezé de Camargo (Mirosmar José de Camargo; 1962-) e Luciano (Welson David de Camargo; 1963).
É, confessadamente, influenciado por cultura internacional: “Aqui, no Brasil, nós enfrentamos o discurso do costume, o discurso da família, o discurso do patriotismo, ou seja, aqui nós enfrentamos o discurso de tudo aquilo que a gente aprendeu historicamente a combater.” Nesse dia, 29-6-2023, na abertura do XXVI Encontro do Foro de São Paulo, em Brasília-DF, Lula disse que ser chamado de comunista “não nos ofende”.
Lula moderno é o cético. – “Ele [Celso Daniel, prefeito de Santo André] morreu porque… dizem que Deus traça o destino de cada um. Não acredito em crime político em hipótese alguma. Eu acho que assaltaram, sequestraram e depois perceberam o tamanho do peixe, como diz na gíria policial, e resolveram matar, de forma irresponsável e de medo.”
– “Não acredito que o mensalão tenha existido.”
– “E sinceramente não acredito” em envolvimento de José Dirceu no esquema de corrupção na Petrobras.
– “Eu não acredito que o Vaccari tenha acertado percentual com empresa pra receber, não acredito, não acredito.”
É o Lula racionalista:
– “[Quando] as pessoas entendem que podem se dar o direito de atirar nos outros, todos perdem a razão. Nem Hamas, nem Israel têm razão. (…) a primeira coisa que temos que fazer é que sejam resolvidos os conflitos internos. A Autoridade Palestina não pode negociar a paz se o Hamas não concorda com a paz. É preciso construir a unidade tanto em Israel quanto na Palestina para poder construir a paz.”.
É o revolucionário:
“Talvez esse vereador não pediu [a suspensão] pelo que eu fiz, ele está com medo é que eu receba o título pelo que vamos fazer daqui para frente”. O ano era 2017 e Lula referia-se a Alexandre Aleluia (DEM-BA), então vereador de Salvador que bloqueou, via Justiça Federal, concessão, pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano, de título de doutor honoris causa a Lula. Ele fala um português ruim, mas extraem-se de sua boca o “eu fiz” e o “vamos fazer”. Entre os dois tempos verbais, há o engajamento acadêmico que se promoveu em favor de Lula. A UNESCO concedeu-lhe, em 2008, o Prêmio Félix Houphouët-Boigny pela Paz. Em 2010, o Fórum Econômico Mundial fez de Lula Estadista Global por atuação “em áreas como a erradicação da pobreza” e a ONU, Campeão Mundial na Luta Contra a Fome e a Desnutrição Infantil. Por uma questão de honra, é doutor pelas Universidades Federais do ABC (2013), da Bahia (2011), de Pernambuco (2011) e de Viçosa (2011), entre outras, e pela Universidade de Coimbra (2011); por destacar-se, “na defesa dos direitos humanos” , segundo o Conselho de Paris, é cidadão honorário de capital da França (2020).
Na melhor das hipóteses, a vontade de fazer algo assustador – “ele está com medo é que eu receba o título pelo que vamos fazer daqui para frente”, ele disse – foi adiada até que, em 30-1-2025,
Lula, num rasgo de sinceridade, revelou algo de sua parceria com Paulo Pimenta, então ministro da Secretaria de Comunicação Social:
– “O povo tem razão, a gente não tá entregando aquilo que a gente prometeu. Então, como o povo vai falar bem do governo se a gente não tá entregando?”.
Nem sempre, portanto, a conexão entre os Lulas (tradicional e moderno) é a mentira, o desprezo pela verdade, entendida, em nome da revolução, como moralismo mesquinho.
No entanto, é aconselhável, Lula, anunciar um plano de enfrentamento à mentalidade pequeno-burguesa. Por exemplo, não seria importante instalar, em grandes cidades do interior, cenários de transição do tipo escassez de esmolas, por inexistência de sociedade com consciência pesada, e mendicância transformada em corporação de moribundos? Esquinas cobertas de farrapos como se fossem leitos de um hipotético hospital a céu aberto chamado “Uberlândia”, “Uberaba” ou “Juiz de Fora”. Peguei os primeiros, na lista, por PIB, de municípios de Minas Gerais, depois dos contaminados pela proximidade com a Capital, Betim e Contagem.
Chegou a hora, na Moscou da década de 1920, em que se estripou uma catedral para transformá-la em museu a serviço de educação popular. Camponeses e operários foram condicionados a frequentar loja estatal onde, na parte superior das paredes, viam-se quadros com figuras de papelão encapado com veludo como sinal de unidade entre eles. Paredes de restaurantes foram cobertas com slogans de propaganda: “Deus não existe”, “religião é invenção”, “Criação não existe” e outras referências a Capital. Vermelho tornou-se cor dominante em sala de aula com mesas e bancos compridos no lugar de carteiras; colado em mural, trabalho escolar transformou-se em presente da criança para a coletividade; nos ângulos possíveis: estrela soviética e retrato de Lenin.
À época, só um louco inventaria escrever, por exemplo, comparando arte italiana sob o fascismo e russa sob a ditadura do proletariado. Ao lado da expressão de miséria imutável de mendigos, a Moscou de 1920 abrigou a Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária para controlar a produção artística, cumprir encomendas oficiais e organizar exposições. Veja, Lula: na Rússia, o processo revolucionário envolveu uma intensa criatividade artística. O teatro foi indispensável porque, por exemplo, a festa familiar desapareceu da vida real e tornou-se atração de palco, permitindo ao homem comum entender a forma que a Rússia pós-1917 ia assumindo. Na política externa, paz, necessária a estabelecimento de acordos comerciais com Estados imperialistas. Internamente: – repressão ao comunismo militante; – libertação do povo do conflito de classe; e, – despolitização da vida do cidadão. Lula, foi uma espécie de restauração, na qual a juventude foi educada fora da experiência revolucionária e a absorveu como discurso. Para tanto, a receita russa foi difundir o conhecimento dos clássicos russos e europeus ocidentais. Livros, Lula, seu inferno.
Mas não se assuste com as imagens evocadas nos últimos parágrafos. Foram extraídas de Walter Benjamin (1892-1940), que, em Diário de Moscou, registra que “os valores culturais burgueses entraram numa fase extremamente crítica com o declínio da sociedade burguesa. Dada a maneira como se apresentam hoje, dada a forma que assumiram nos últimos cem anos nas mãos da burguesia, eles não podem ser expropriados sem que, ao mesmo tempo, percam sua importância última, por mais questionável ou até nociva que esta possa ser.
Estes valores, como cristais preciosos, têm, de certa maneira que ser transportados e não sobreviverão sem a embalagem apropriada. Embalar, entretanto, significa tornar invisível, o que é antagônico à popularização desses valores exigida oficialmente pelo Partido. E agora torna-se evidente na Rússia Soviética que tais valores estão sendo popularizados justamente naquela forma distorcida e árida que se deve, em última instância, ao imperialismo.”
Vale a pena pensar nisso, Lula, e agir o quanto antes, pois o segundo tempo já começou, se é que me entende. Pegue emprestado, na biblioteca do Itamaraty, um exemplar de Diário de Moscou, sente-se ao lado de alguém de sua confiança e peça a essa pessoa que o leia para você em voz alta.
Se possível, faça anotações.
(*) Ilder Miranda Costa é professor da UFMG