23-11-2024 às 08h48
Dr. Handel Cecílio
A prática do Padroado Régio é exemplificada de maneira evidente na criação da Primeira Sé Brasileira, a de Salvador, Bahia, em 1552.. Inicialmente destinados exclusivamente ao uso litúrgico, os órgãos eram enviados ao Brasil como parte do sistema do Padroado Régio, que incluía benefícios como a provisão de instrumentos para as igrejas. Este artigo aborda essa transição, destacando o papel dos mestres artífices portugueses (organeiros) e os primeiros passos dados em terras brasileiras para estabelecer uma prática local de construção desses instrumentos, a arte da organarial.
O Padroado Régio Português no Brasil foi um sistema de governança religiosa estabelecido entre a Coroa Portuguesa e a Igreja Católica Romana, que conferia ao rei de Portugal, e posteriormente à Coroa do Brasil, poderes sobre a administração eclesiástica nos territórios sob seu domínio. Esse sistema foi moldado pelo contexto das expansões marítimas e da colonização, garantindo aos monarcas portugueses a autoridade para intervir em questões da Igreja, como a nomeação de bispos, o pagamento dos salários do clero, organistas e meninos do coro, a construção de templos religiosos e a gestão dos dízimos. O Padroado teve início em 1493, com a emissão das bulas “Inter Caetera” pelo Papa Alexandre VI, que concedia a Portugal e à Espanha direitos sobre os territórios recém-descobertos e sua administração eclesiástica. Em 1514, foi consolidado por meio do Tratado de Patronato (Padroado), com a bula “Praeclarae devotionis” emitida pelo Papa Leão X, formalizando os direitos dos reis portugueses sobre a administração eclesiástica nas suas colônias.
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Cabe esclarecer que as igrejas não serviam apenas como locais de culto, mas também como centros de educação, assistência social e controle cultural. Faziam parte dessas obrigações régias: a construção e manutenção de igrejas, o sustento do clero (incluindo coros e organistas), as missões de evangelização, o controle e a organização da Igreja local, além do apoio à educação e à caridade. O sistema do Padroado Régio foi extinto oficialmente no Brasil com a Proclamação da República, em 1889, quando a separação entre Igreja e Estado foi formalizada em 1890, por decreto assinado por Marechal Deodoro da Fonseca, que regulamentou a liberdade de culto e encerrou o sistema, retirando os privilégios da antiga relação entre o Estado e a Igreja Católica Romana.
A prática do Padroado Régio é exemplificada de maneira evidente na criação da Primeira Sé Brasileira, a de Salvador, Bahia, em 1552. Em carta dirigida ao Rei Dom João III, o Bispo D. Pero Fernandes Sardinha, primeiro Bispo do Brasil, solicita a confirmação de Francisco Vacas como Mestre da Capela, evidenciando o vínculo entre a Igreja e a Coroa, já que o salário deste músico era pago pela Coroa Portuguesa. Mais significativo ainda é o pedido do Bispo, que, reconhecendo a importância de estabelecer uma conexão com os costumes locais e atender à religiosidade do povo, solicita ao Rei de Portugal o envio de órgãos de tubos para a nova Sé Primaz do Brasil: “Não se esqueça Vossa Alteza de mandar cá uns órgãos porque, segundo este gentio, é amigo de novidades; muito mais se há de mover por vos dar um relógio e tanger órgãos que por pregações nem admoestações”. Este episódio ilustra de forma prática a responsabilidade da Coroa Portuguesa em garantir que o Brasil Colônia não apenas tivesse a presença e os símbolos da Igreja Católica, mas também recursos adequados para a prática litúrgica, como o envio de órgãos e o pagamento de salários para os músicos, um compromisso fundamental do sistema do Padroado.
A título de esclarecimento, o mito de que o ouro utilizado nas igrejas barrocas brasileiras servia para “manter” as riquezas no país está, na verdade, relacionado à necessidade da República de reconfigurar a percepção pública sobre a monarquia e legitimar o novo regime. Após a Proclamação da República em 1889, os republicanos sentiram a necessidade de criar uma narrativa que deslegitimasse a monarquia, destacando sua suposta corrupção, ineficiência e mau uso dos recursos nacionais. O uso do ouro nas talhas tinha, de fato, um propósito profundamente religioso e simbólico, alinhado com as crenças, práticas e estilo arquitetônico do período barroco. Assim, o ouro não visava à retenção das riquezas no Brasil, mas sim à expressão cultural, religiosa e artística, refletindo o esplendor da fé católica. Representava a glória e a majestade divina, além de simbolizar o poder das instituições e dos mecenas locais, em uma sociedade profundamente marcada pela religiosidade e pela hierarquia social. Essa prática seguia um padrão comum em outros territórios do império português e até mesmo em outras colônias, como na América Espanhola, não devendo ser confundida com uma política de retenção do ouro.
No Brasil, até princípios do século XVIII, eram usados órgãos positivos de mesa, órgãos positivos de chão e órgãos realejos, em sua maioria vindos de Portugal. Não foi encontrado algum documento ou mesmo crônica de época, que afirme o início da construção de órgãos no Brasil antes dos oitocentos, assim como também do envio de grandes órgãos de igreja da Europa para o Brasil. A determinação do primeiro organeiro é um trabalho árduo de busca em documentos eclesiásticos nos arquivos públicos, e nos arquivos das igrejas, das ordens terceiras, e nos mosteiros e conventos. Muitos documentos seculares e eclesiásticos, tanto no Brasil como em Portugal, perderam-se ao longo dos séculos, destruídos pelo tempo ou pelo descaso. Acrescente-se a estes, as invasões holandesas, quando muitos documentos eclesiásticos foram perdidos. Consequentemente, fatos e dados históricos foram apagados para sempre. Na Cidade do Recife, algumas das irmandades e ordens terceiras jogaram seus livros de registros no Rio Capibaribe. Algumas confrarias julgaram estes livros sem algum tipo de valor, por serem antigos, e por alguns estarem deteriorados.
O século XVIII pode ser também considerado como a “era de ouro” do órgão de tubos no Estado do Brasil. Com a descoberta do ouro de diamantes na Capitania de Minas Gerais no final dos seiscentos, o eixo econômico foi deslocado para o centro-sul brasílico. Desta forma, Portugal obteve recursos financeiros para prover as igrejas e catedrais da colônia com ornamentos e órgãos de tubos.
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Assim, a Coroa Portuguesa começou a suprir as sés catedrais enviando grandes órgãos da Corte de Lisboa. Era um momento de transição em que no Estado de Brasil as igrejas substituíram seus órgãos portáteis, positivos e realejos, para os grandes órgãos de igreja. Como resultado da situação econômica portuguesa na primeira metade dos oitocentos, diversos organeiros estrangeiros se transferiram ou construíram órgãos para Portugal. Destacam-se os seguinte organeiros estrangeiros: o alemão Hans-Joachim Kulenkampff, discípulo de Arp Schnitger (1711 a 1721); o espanhol Benot Gomes (1719 a 1724); e Simon Fontanes, da Galiza. O organeiro Antônio Xavier Machado e Cerveira construiu e enviou muitos de seus órgãos de grande dimensão para o Brasil. A partir do século XVI ao XIX, a organaria portuguesa desenvolve-se e prospera com o surgimento de vários organeiros, que produziram órgãos em quantidade e qualidade. Na medida que os novos Bispados eram sendo fundados no Brasil, e erigidas as sés catedrais, a Coroa Portuguesa supria com órgãos, assim como também na criação e manutenção dos cargos de organista.
Em consulta ao Conselho Ultramarino, o Provedor da Fazenda Real da Capitania de Pernambuco, João Rêgo de Barros, em carta dirigida ao Rei de Portugal, datada de 6 de agosto de 1722, dá conta das necessidades da Sé de Olinda. O órgão antigo necessitava de reparos urgentes, pois não funcionava mais. Destaca-se neste texto a afirmativa do Provedor da fazenda Real: “e que assim pedia a Vossa Majestade fosse servido mandá-la (esta Sé) prover de ornamentos, como também de um órgão para as ocasiões de coro, por se ter arruinado o que havia, e não haver na terra quem o conserta”. Este pedido deixa manifesto a carência de organeiros pela não existência destes oficiais no Estado do Brasil.
Uma segunda ilustração da prática do Padroado Régio encontra-se em um documento enviado pelo Rei Dom João V, em 11 de março de 1717, informando ao Vice-Rei e ao Capitão-Geral do Estado do Brasil a confirmação do pedido feito em 18 de dezembro de 1716 para um novo órgão de tubos destinado à Catedral de Salvador. Até então, eram utilizados nas igrejas pequenos instrumentos, como órgãos positivos e realejos, que não mais atendiam às necessidades sonoras dos templos da época. Posteriormente, o Rei de Portugal presenteou a Sé Catedral de Salvador com um relógio e um grande órgão de tubos. Por meio de um requerimento de 16 de março de 1723. Ao serem enviados os grandes órgãos construídos na Corte, chegaram também organeiros para a montagem e instalação dos instrumentos. Estes técnicos no ofício da organaria, enviados pelo Rei Dom João V, vinham também com a missão didática de ensinar o ofício aos brasileiros, os portugueses nascidos no Brasil. Este era o início da escola de organaria brasileira, que teve suas raízes na escola ibérica de organaria portuguesa, a gênese da organaria brasileira.
O Provedor da Mitra da Sé da Bahia, Padre Caetano Dias de Figueiredo, solicitou ao Provedor da Fazenda que enviasse dinheiro ao Tesoureiro do Conselho Ultramarino para a construção de um órgão para a referida Sé. Esta é a primeira referência documental encontrada sobre a chegada dos grandes órgãos de igreja de Portugal. A Catedral de Salvador foi uma das primeiras igrejas a possuir um órgão de grande porte no Estado do Brasil, marcando a transição dos pequenos órgãos para os grandes órgãos de tubos de igreja. Com a chegada dos grandes órgãos construídos na Corte, vieram também organeiros responsáveis pela montagem e instalação dos instrumentos. Esses técnicos, enviados pelo Rei Dom João V, tinham ainda a missão de ensinar o ofício aos brasileiros, ou seja, aos portugueses nascidos no Brasil. Esse foi o início da escola brasileira de organaria, que teve suas raízes na escola ibérica de organaria portuguesa, representando a gênese da organaria brasileira.
Em 28 de outubro de 1723, um pedido especial foi realizado ao Rei Dom João V: a solicitação ao Provedor-mor da Fazenda Real para que providenciasse um novo coro e duas cadeiras para o cadeiral da Catedral da Sé. Esse requerimento, no entanto, foi apenas o início de uma demanda maior e mais simbólica. Em um documento subsequente, destacou-se uma realidade e uma necessidade claras neste momento: o órgão existente na Sé era insuficiente. Era pequeno, antigo e incapaz de atender ao grande espaço da catedral, ele não conseguia alcançar a grandiosidade e a majestade que a liturgia exigia. As palavras da época ressaltavam a urgência: “A Sé se encontra sem um órgão adequado, pois o atual é muito pequeno, velho e incapaz para servir a um templo tão grandioso […]”.
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O documento ainda afirma, evidenciando a equiparação entre a Sé da colônia e a Sé da corte: “por ser o Cargo da Sé da Bahia não menos que o da dita Oriental de Lisboa”.
Dois anos depois, em 17 de setembro de 1725, D. Luiz Alvares de Figueiredo assumiu o Bispado da Bahia, abraçando o desafio de restaurar a Catedral da Sé, que estava em ruínas. Com recursos financeiros à disposição, ele tomou a iniciativa de instalar um novo órgão, enviado como presente do Rei de Portugal. Em 10 de outubro de 1728, o Bispo escreveu ao monarca relatando que, em 1724, o órgão e os oficiais para a instalação chegaram e que os trabalhos foram iniciados. O órgão necessitava de uma base e varandas de talha, cuja execução foi aprovada pelo provedor da fazenda. No entanto, o projeto enfrentava interrupções e precisava ser concluído, incluindo outras obras da Sé, para que a catedral estivesse à altura da grandeza de sua missão espiritual e cultural. Por meio de requerimento de 1723, os organeiros Manuel Rodrigues e Luís Nunes solicitam passagem para viajaram à Bahia, com a finalidade de fazerem o assento do novo órgão de tubos na Sé Catedral da Bahia. Segundo este requerimento, os órgão de tubos eram construídos em Portugal, e posteriormente montados no Brasil por técnicos enviados pelo Rei. Poucos anos após sua instalação, o grandioso órgão de tubos da Sé Catedral da Bahia já precisava de reparos. Um conjunto de cartas trocadas entre o Rei de Portugal e o Estado do Brasil, datado entre 1739 e 1744 e armazenado no Arquivo Ultramarino, revela os esforços para restaurar o instrumento. Em 4 de março de 1739, o Provedor-mor da Fazenda da Bahia relatou ao Conselho Ultramarino o estado precário da catedral, destacando, entre outras questões, os problemas no novo órgão de tubos.
O artigo de D. Luiza da Fonseca, publicado na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia em 1952, fornece detalhes fascinantes sobre as propostas recebidas para o conserto. Entre os interessados, estava Felix Martins de Rates, que comparou o órgão ao de São Francisco e relatou defeitos devido à madeira usada, suscetível ao cupim. Ele sugeriu uma reforma completa com madeira nova, orçada em 2.000 cruzados, ou 4.000 cruzados, caso a talha e a escultura fossem incluídas. Rates ofereceu ainda afinar os órgãos da cidade, como era feito na Corte. Clemente Gomes, outro concorrente, afirmou que metade dos 24 registros do órgão não tocava e propôs um conserto por 600$000 réis, com as viagens pagas. Se fosse necessário substituir toda a madeira, o valor subiria para um conto de réis, com metade paga antes da partida. O genovês Pascoal Caetano Oldovini entrou na disputa com uma proposta ousada, oferecendo um preço 100$000 réis abaixo do menor lance registrado. Experiente, Oldovini se gabava de ter trabalhado em órgãos da Sé Ocidental de Lisboa e do Convento de Belém, mostrando sua determinação em conquistar o serviço. É fundamental esclarecer que, no contexto histórico e técnico, os principais inimigos dos órgãos de tubos no Brasil eram o cupim, que atacava os tubos, os mecanismos e a caixa do órgão; a umidade, que comprometia o madeiramento; e a poeira, que se acumulava nos tubos, afetando sua sonoridade e funcionamento.
Essas negociações revelam não apenas a complexidade e a importância de manter um órgão de tubos em perfeito estado, mas também o alto nível técnico exigido dos artesãos da época. O órgão, peça central nas liturgias, era mais do que um instrumento; representava a majestade da música sacra e a grandiosidade da fé em uma era de esplendor cultural e religioso. Corrobora com esta afirmação um documento, datado de 25 de junho de 1735, quando o Procurador-mor da Fazenda Real do Estado do Brasil, Luiz Lopez Pegado Serpa, ao fazer um comentário sobre o alto custo de vida da Cidade de Salvador, assim expressa: “[…] da grande carestia desta terra, fica sendo muito diminuto este salário para se alimentar a pessoa (organista) que se ocupe naquele emprego com o encargo de sustentar um moço que se ocupe no exercício dos foles (folista ou foleiro); […]”. Ainda neste documento, o Procurador Luiz Pegado Serpa sugere que deveria haver dois organistas semanários na Catedral da Bahia, dando-se a cada um o salário de sessenta mil reis, e assim manterem seus próprios folistas, não havendo mais falta de organista nos ofícios divinos.
Em 26 de junho de 1740, o organeiro português Felix Martins de Rates assinou em Lisboa um contrato no valor de trezentos mil réis para realizar os reparos necessários no órgão da Sé de Salvador. Essa missão, no entanto, foi mais do que apenas uma obra de restauração: Rates trazia consigo a responsabilidade de formar um organeiro no Brasil, capacitando-o para construir, manter e reparar órgãos de tubos, assegurando a continuidade dessa tradição musical e litúrgica no país.
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Quatro anos depois, em 20 de fevereiro de 1744, Felix Martins de Rates desembarcou no Porto de Salvador, vindo diretamente da Corte de Lisboa, com a finalidade primeira de restaurar o órgão da Sé de Salvador, uma peça central nas celebrações religiosas da cidade. Documentos da época descrevem a recepção formal feita pelo desembargador Manoel Antonio da Cunha de Sottomayor, que trouxe Rates à sua presença para discutir os trabalhos a serem realizados. Ao lado dele, estava Mauricio Rodrigues Garcia, que foi avaliado para assumir futuros ajustes e reparos no instrumento. Por meio de carta do Rei de Portugal, Dom João V, é comunicado ao Conde de Galveias, Vice-rei e Capitão Geral de mar e de terra do Estado do Brasil, o ajuste feito com Mauricio Roiz [Rodrigues] da Silva. Conforme foi acordado, Mauricio Rodrigues da Silva receberia um salário anual de trinta mil réis, pagos pela Fazenda Real, para que este aprendesse o ofício de organeiro e desse manutenção ao órgão da Sé da Bahia.
Assim, com comprovação documental em fontes primárias, fica esclarecida uma das grandes dúvidas referentes ao momento em que ocorreu, na história da arte organística brasileira, a transição dos órgãos trazidos de Portugal para aqueles construídos no Brasil. O texto da carta também revela o processo, ocorrido no primeiro quartel do século XVIII, para a formação de mestres organeiros em solo brasileiro, marcando o início da construção e manutenção desses instrumentos em terras brasileiras. Em sua missão de formar organeiros no Estado do Brasil, é provável que Felix Martins Rates tenha trazido consigo algum manual de construção de órgãos de tubos, além de equipamentos e ferramentas necessárias para que seus discípulos brasileiros continuassem a exercer o ofício da organaria. Assim, marca-se e gênese da organaria brasileira, um momento crucial no desenvolvimento da arte de construir e manter órgãos de tubos em nosso país.
A seguir, mais um documento comunica a chegada do organeiro português Félix Martins de Rates à Bahia para o conserto do órgão da Sé Catedral e em sua missão de formação de um organeiro brasílico. Este documento também ratifica o ajuste com o organista Mauricio Roiz [Rodrigues] Garcia e o valor de seu salário e suas obrigações como organeiro na manutenção do órgão da Sé da Bahia. Portanto, para ser dada a manutenção no instrumento da Sé Catedral, além da manutenção básica e afinação, Mauricio Rodrigues Garcia também teria de aprender a construir os diversos tubos de um órgão. Na realidade, a intensão da Coroa Portuguesa na formação oficiais em organaria no Estado do Brasil era tornar menos dispendioso para seu erário, como também suprir a escassez de organeiros no Estado do Brasil. Assim trata o documento: “como este determinara depois de preparar o dito órgão fazer viagem para a cidade de Pernambuco, e dela passasse para a do Rio de Janeiro, ou para outra qual quer parte atracar da sua vida: atendendo umidade e poeiras deste País, e não ter o mesmo órgão resguardo para evitar estes dois contrários, tomou a resolução para demandar chamar a minha presença a Mauricio Roiz Garcia, homem curioso, e que sabe tocar órgão, e o capacitar a que com efeito aprendesse com o dito Felix Martins a consertar, e se fazer a mesma reparação a que ele veio, prometendo-lhe a que no caso que fique ciente em semelhantes consertos de lhe dar todos os anos trinta mil reis, pelo trabalho de qualquer concerto que fizer no mesmo órgão da Sê, tendo-o sempre limpo, asseado de sorte que se toque com todos os rezistros (registros) que tem […]”. Era costume, e ainda é, que os organistas compreendam o funcionamento do instrumento e realizem algumas manutenções, sendo a principal delas a afinação e a harmonizacao do timbre dos registros.
Portanto, como confirmado no documento acima, o organeiro português Felix Martins de Rates, em sua outra incumbência, tinha o encargo de fazer discípulos para a manutenção do órgão da Sé. Para este início da formação de organeiros brasílicos, o organista Mauricio Rodrigues Garcia deveria acompanhar os serviços, e assim, aprender a dar manutenção no instrumento. Por este novo ofício, Mauricio Rodrigues Garcia passaria a receber trinta mil réis anuais da Fazenda Real. Houve outro candidato a receber a formação em organaria, contudo, este não compareceu às aulas. Conjuntamente, o documento deixa claro os dois problemas dominantes que geravam manutenções constantes nos órgãos do Brasil: a humidade e a poeira. Para isto, seguiu Felix Martins de Rates em sua missão para Pernambuco, Rio de Janeiro, e outras partes do Estado do Brasil. O organeiro Felix Martins Rates construiu outros órgãos de tubos no Brasil, Um deles, o órgão da Irmandade de Conceição dos Homens Pardos do Rio de Janeiro. Em Templos Históricos do Rio de Janeiro, de Augusto
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Mauricio, ao relatar um uma animosidade entre duas confrarias, a de N. S. da Boa Morte, ereta em 1663, e N. S. da Conceição dos Homens Pardos, ereta em 19 de julho de 1700, quando estas irmandades estavam instaladas na Igreja e N. S. da Conceição e Boa Morte. Resolveram ambas as irmandades construir um novo templo, e em 25 de março de 1735 foi lançada a pedra fundamental. Portanto, estes dois textos anteriores confirmam a permanência do organeiro Felix Martins Rates, como também suas viagens à outras partes do Brasil, suprindo as necessidades da formação de organeiros brasílicos. A princípio o ensino estaria focado na afinação e na manutenção dos órgãos de tubos, mas, consequentemente, estaria sendo ensinado a arte da construção destes instrumentos.
Todos os registros documentais encontrados, sobre órgãos construídos por organeiros brasílicos, são posteriores à vinda de Felix Martins de Rates. Há alguns relatos de organistas, ou padres, que somente afinavam órgãos, o que era prática entre os organistas darem manutenção básica nos instrumentos das igrejas onde atuavam. A exemplo, cita-se o Padre Frei João Fagundes, que, segundo o Livro de Despesa: 1672-1681, da Santa Casa de Misericórdia de Salvador, deu manutenção no órgão em maio de 1676: “despendeu o dito (tesoureiro) seis mil réis que deu ao Pe . João Fagundes de afinar, e consertar o órgão”.
Por muito tempo Agostinho Rodrigues Leite foi considerado o primeiro organeiro do Brasil. Contudo, quando foi instalado o órgão da Sé de Olinda, 1729, Agostinho Rodrigues Leite estava com apenas oito anos de idade, portanto, dificilmente ele estaria recebendo alguma formação do organeiro Clemente Gomes, responsável pelo assento do órgão da Sé de Olinda. Mas, em 1744, Agostinho Rodrigues Leite estaria com seus vinte e dois anos de idade, e fabricaria seu primeiro órgão para o Mosteiro de São Bento de Olinda somente aos vinte e oito anos. Por falta de documentação, não é possível afirmar com certeza. No entanto, considerando as datas, pode se presumir que o organeiro português Félix de Rates tenha sido o mestre de organaria de Agostinho Rodrigues Leite em Salvador, durante o conserto do órgão da Sé, ou, ainda, em sua viagem subsequente a Pernambuco. Agostinho Rodrigues Leite, por sua vez, fez de seu filho, Salvador Rodrigues Leite, um discípulo, dando propagação à formação de organeiros brasílicos. Salvador Leite atuou nas Cidades do Recife e de Salvador.
Na Capitania de Minas Gerais, diversos fatores principais contribuíram para a construção de órgãos locais. Foram estes: a distância do Rio de Janeiro, por onde chegavam os órgãos vindos de Portugal; as dificuldades geográficas, serra altas; as viagens eram realizadas em comboios, realizadas em épocas do ano não chuvosas, pois os rios enchiam e ainda não havia pontes; e a mesma riqueza gerada pela mineração, levou a supervalorização dos bens de consumo; e a proibidas a instalação das ordens monásticas, isolamento imposto pela Coroa Portuguesa para evitar o contrabando do ouro. Além destas dificuldades, existiam os perigos de assaltos por ciganos, escravos fugidos e quilombolas. Uma viagem, pela Estrada Real, do Rio de Janeiro a Ouro Preto demorava três meses, à Diamantina seis meses. Mesmo os mestres arquitetos utilizaram-se de matérias regionais nas construções das igrejas devido a estas dificuldades. Assim, justifica-se construção local dos órgãos nas igrejas matriz e nas ordens terceiras, segundo suas posses. Como exemplo ilustrativo, citam-se os dois órgãos construídos na Cidade de Diamantina, antigo Arraial do Tijuco. O transporte de um órgão positivo de armário, do litoral ao Arraial do Tijuco, ficaria extremamente dispendioso. Portanto, todas estas razões levaram à construção dos órgãos da Igreja Matriz de Santo Antônio (1778? – 1783?) e da Ordem Terceira do Carmo (1782 – 1787) pelo Padre Manuel de Almeida e Silva.
Quanto ao padre organeiro da Capitania de Minas Gerais, Manuel de Almeida e Silva, cursou gramática, filosofia e teologia moral no Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, em Mariana. De acordo com seu processo de habilitação, Padre Manuel de Almeida da Silva e seu irmão, Padre Antônio de Almeida da Silva foram habilitados como padres seculares, Presbíteros da Ordem de São Pedro. Eram Filhos legítimos dos reinóis Antônio de Alves Silva, natural da freguesia do Salvador de Parada e Barbuda, termo da Villa de Barcelos, arcebispado de Braga, e de Francisca Thomazia de Almeida Cabral, natural da Freguesia da Sé da Cidade do Porto. Manuel de Almeida e Silva foi habilitado Padre Secular da Ordem de São Pedro no dia 27 de agosto de 1763, aos 24 anos de idade, tendo nascido aos 9 de março de 1739.
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Considerando os dados mencionados, Manuel de Almeida e Silva era aluno do Seminário de Mariana na mesma época em que o órgão da Sé Catedral de Mariana foi instalado, entre os anos de 1752 e 1753, quando tinha entre treze e quatorze anos de idade, uma idade propícia para o aprendizado de ofícios. Nesse período, é muito provável que ele tenha tido seus primeiros contatos com os fundamentos da organaria, acompanhando a instalação do órgão de tubos, suprido pela Coroa Portuguesa, em sua missão de prover as catedrais brasileiras. Ademais, considerando que permaneceu no Seminário de Mariana até 1763, Padre Manuel de Almeida e Silva, durante aproximadamente dez anos de estudos teológicos, adquiriu mais conhecimentos com organistas e organeiros que atuaram em Mariana e em Vila Rica (Ouro Preto), então um centro de referência na organaria da Capitania das Minas Gerais.
Assim, teve início a escola de organaria colonial brasileira, através da formação de oficiais no sistema “mestre discípulo”, assim como nas artes e ofícios. Não pode se descartar aqueles que construíram órgãos por engenho, pela imitação de órgãos existentes, ou mesmo através dos manuais e tratados de construção de órgãos de tubos. Assim, por diligência do Rei Dom João V, foi capacitado o primeiro organeiro brasílico, Mauricio Rodrigues da Silva, discípulo do mestre organeiro português Felix Martins Rates. Na sequência de sua viagem para Pernambuco e Rio de Janeiro, afinou, construiu, consertou órgãos de tubos, e formou outros organeiros nesta arte da organaria. Nas instalações subsequentes dos órgãos em outras sés catedrais, certamente manteve-se a mesma tradição e prática de formação de organeiros, com a relação mestre-discípulo. Seguramente, este modelo adotado pela Coroa Portuguesa seria menos dispendioso na manutenção dos órgão das catedrais, e assim, haveria organeiros brasileiros capacitados para a construção de órgãos de tubos para as matrizes, conventos, mosteiro, e capelas das ordens terceiras. Assim, a arte da organaria se estabeleceu a partir dessa rica tradição de aprendizado e adaptação, refletindo a fusão de cultura, fé e arte, e com o apoio do Padroado Régio da Coroa Portuguesa, forjando, assim, a Gênese da Organaria Brasileira.
Dr. Handel Cecilio – Organista e Pianista – Concertista Internacional Professor de Música – Músico em eventos e cerimônias – www.handelcecilio.com i Este artigo está vinculado à minha tese de doutorado pela UNICAMP/Universidade de Coimbra (Portugal), que pode ser encontrada na íntegra no site: https://handelcecilio.com/wp-content/uploads/2023/05/tese-de-doutorado-handel-cecilio-unicamp-ra-065407- universidade-de-coimbra-2009-2013-reduzida-para-o-site.pdf