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28-02-2025 às 07h26
José Luiz Borges Horta*
Um dos mais importantes juristas da segunda metade do século XX no Brasil, professor por décadas na Ilha de Nossa Senhora do Desterro, o argentino Luís Alberto Warat, sempre nos alertava contra o gravíssimo risco do que ele chamava de “senso comum teórico” dos juristas.
Warat defendia que mesmo os juristas, e em especial os meros operadores do Direito, guardam um senso comum, com percepções vulgares e pouco refletidas, algo incultas e bastante superficiais, sobre temas que dizem respeito ao próprio universo do Direito.
Como ocidentais, fomos todos educados em uma percepção da democracia e do Estado de Direito inteiramente alicerçada nas tradições greco-romano-cristãs e portanto temos uma “pré-compreensão”, cultural, histórica, que nos acompanha em tudo o que buscamos apreender e que torna todo e qualquer processo de conhecimento nas Humanidades um processo de fusão de horizontes entre a tradição do autor e a tradição do intérprete, como o maior filósofo do século XX, Hans Georg Gadamer, ensinou às novas gerações.
O século XX foi inteiramente hegemonizado, em escala global, pela cultura norte-americana e anglófona, na qual Estado de Direito e democracia não se confundem, até por não haver tradução perfeita para a língua inglesa deste que é o maior projeto da cultura ocidental (o Estado de Direito). A grande ênfase determinada pelo Hegemon planetário sempre foi naquilo que lhes parecia central, a democracia, ainda que esta seja, talvez, das palavras mais polissêmicas de toda a história humana.
Se observarmos os BRICS, por hora na sua composição mais originária, veremos que processos eleitorais alteraram ou renovaram suas vidas políticas nos últimos dezoito meses em uma sequência contínua. Foram feitas eleições no Brasil (2022), na China (2022), na Rússia (2023), e finalmente na Índia e na África do Sul, nestes últimos dias, em 2024. Todas as eleições se deram de modo diferente: cada um dos países possui um modelo próprio de democracia.
Quatro dos BRICS vivem sob regime político desenvolvido, como toda a Europa: têm sistemas parlamentaristas de governo (com destaque para o regime sul-africano, muito peculiar). Somente o Brasil insiste no sistema presidencialista — em todos os demais países a chefia de governo é exercida pelo líder da maioria parlamentar e a chefia de Estado é exercida pelo presidente da República, que só é eleito pelo voto direto na Rússia e em nenhum outro país (no Brasil também, o que nos torna politicamente menos desenvolvidos que a própria Rússia, que ao menos é parlamentarista).
O fato de no Brasil não haver sistema parlamentar, não haver mais voto em cédula eleitoral desde FHC, não haver controle democrático do processo eleitoral (os defensores do sistema consideram importante haver o controle “aristocrático-jurisdicional” implantado pela Ditadura Vargas em 1932), não haver tradição de parlamento forte, nos torna um tanto exóticos nos BRICS, nos aproximando de um país menos capaz de autogovernar-se, uma vez que permanentemente perdido em divisões artificiais, induzidas pelo bipartidarismo forçado pelo regime militar ou pela eleição em dois turnos, agravada pela reeleição.
As eleições brasileiras estão muito mais próximas de um plebiscito cesaro-bonapartista (Domenico Losurdo) que de uma corriqueira e usual renovação das elites dirigentes. Como vimos em outubro de 2022, fanáticos e fundamentalistas do bipartidarismo artificial e artificioso tornam o exercício da democracia em um processo tortuoso, torturante e tenebroso.
Os eleitos, além de minoritários no conjunto de eleitores e absolutamente minoritários no conjunto populacional (de vez que boa parte da população é impedida de votar por ridículos critérios censitários), não raro não possuem base parlamentar suficiente para governarem, tornando o processo eleitoral em mera performance construída para legitimar os arranjos e rearranjos de poder construídos no Estado sindical de Getúlio Vargas e que ainda não foi possível aos brasileiros e brasileiras purgar e expurgar. Quase todas as instituições mais criticáveis, aberta ou sigilosamente, no Brasil, são originárias da mente doente e degenerada do ditador Getúlio Vargas.
Ao gosto yankee, o bipartidarismo forçado dos segundos turnos nacionais nos aproxima das curiosas disputas norte-americanas, onde parece que a esquerda é azul (mas obviamente não é a esquerda) e parece que a direita é vermelha, ao arrepio de toda a tradição simbólica da política que conhecemos. O truque norte-americano é ter uma eleição entre dois lados que representem exatamente o mesmo — desde 1994, portanto nos últimos trinta anos da história eleitoral brasileira, esse “design” vem fazendo a alegria das agências publicitárias e a riqueza dos militantes profissionais.
Na sequência do processo brasileiro, sequestrado pela lógica do falso duopólio, onde os dois lados em disputa no fundo sempre propõem exatamente o mesmo e se comportam da mesma forma, tivemos o terceiro mandato concedido ao Presidente Xi Jinping, na China.
O processo político chinês é infinitamente mais complexo que a nossa parca compreensão imediata e simplória possa apreender. Há milhares de sutilezas na construção do “socialismo com características chinesas”, como compreenderam muito bem Deng Xiaoping e Xi Jinping. O comunismo somente triunfaria na China se fosse capaz de dialetizar-se com toda a tradição confuciana da civilização sínica, e esta foi exatamente a nota central imprimida pela China amplamente vitoriosa de Xi Jinping.
A China é parlamentarista, com uma democracia profundamente representativa, que nasce das raízes mais locais do Partido Comunista Chinês, onde a participação do povo é profundamente incentivada e na qual a ascensão política somente se dá a partir da lenta aprendizagem e comprovação de vocação pública. A culminância deste processo se dá no Congresso do PCC, que elege, por meio da democracia representativa, o secretário-geral do Partido, que assume a presidência da República, indicando ao Parlamento um primeiro-ministro que ali deve ser aprovado.
O caminho adotado pela China não é propriamente nacionalista, uma vez que a China não se vê como uma nação, mas como uma civilização, distinta das demais que coexistimos no planeta: mais que o nacionalismo, mais que o amor a uma nação e a uma pátria, os chineses amam a sua cultura e a reconhecem como uma civilização.
A Rússia é o único país que, ao lado do Brasil, pratica o primitivo hábito de eleger pelo voto direto um ser humano para chefe de Estado, herança inequivocamente latina, já que a Rússia é efetivamente construída sobre os alicerces da cultura do Império Romano do Oriente e Moscou é indiscutivelmente a “terceira Roma”, para onde fugiram boa parte dos sábios bizantinos quando caiu Constantinopla nas mãos definitivas dos povos turcos.
Cristianizada, a Rússia teve várias ondas distintas de modernização, ocidentalização ou europeização, a ponto de boa parte dos estudiosos considerarmos a Europa como uma “casa comum” que vai de Lisboa a Vladivostok (Mikhail Gorbachev). Pedro, Catarina, Lenin, Putin, todos eles buscaram tornar a Rússia maior e mais forte sem retirar da Grande Mãe suas tradições mais fundantes. O exemplo de Lenin é o mais característico: sabemos que o marxismo é antinacionalista, antiestatalista e internacionalista (a luta proletária é interplanetária), mas Lenin pouco ou nada se incomodou com estas tolices ilustradas de Marx. Lenin abraçou a nação russa, construiu o Estado soviético e mostrou a força que uma nação e uma ideia podem ter — curioso que em 2017, no Centenário da Revolução Russa, comemorou-se tudo, menos Lenin. Lenin é um estatalista (e exemplo de estadista), Marx é só um tribalista.
Putin segue no mesmo caminho de Lenin: aposta no fortalecimento da Rússia, na autoestima dos russos, nas tradições mais profundas dos eslavo-ortodoxos. Mais que um nacionalista, Putin vê a Rússia como uma civilização própria, com sua tradição e seus valores, e mesmo quando primeiro-ministro manteve-se leal à civilização eslavo-ortodoxa — o que nos causa surpresa, até, quando sabemos que Putin foi um quadro muito importante na União Soviética, chegando a coronel de seu serviço secreto (a KGB), e não é de maneira nenhuma infenso à fé e às tradições do povo russo.
Na África do Sul, outrora parte do Império britânico, como a Índia, a vibrante democracia que levou Nelson Mandela à presidência do país é, naturalmente, fortemente parlamentarizada, competindo ao Parlamento a eleição do Presidente, que acumula a chefia de Estado e a de governo. Há uma miríade de partidos, dos quais o maior é o Congresso Nacional Africano (CNA), partido de Mandela, que sempre governou desde o fim do apartheid, mas agora terá de se compor no parlamento com um novo partido, saído de sua costela esquerda e liderado pelo ex-presidente Jacob Zuma, que levou a África do Sul aos BRICS e tem posições nacionalistas tão evidentes quanto as posições históricas do CNA de Mandela. Ali, mais uma vez, governo democrático é governo nacionalista.
Resta-nos a maior democracia do planeta: a Índia, berço de tantas das nossas tradições originárias. O Presidente é eleito indiretamente, e portanto tem pouca importância (como outrora tinha a Rainha da Inglaterra). Desde a descolonização, a Índia fora comandada pela família governamental de Nehru, talvez muito secularizada para uma cultura então multimilenar. Estamos já na terceira e cada vez mais arrebatadora vitória do partido nacionalista Bharatiya Janata Party (BJP), o Partido do Povo Indiano, de Narendra Modi, que em seus dois mandatos anteriores como líder da maioria no parlamento indiano (e chefe de governo) vem operando um milagre econômico e uma expansão demográfica jamais vista no subcontinente indiano. A Índia hoje não só é o maior país do mundo em habitantes como é dos países com maior crescimento proporcional de produto nacional do planeta.
O processo central a que se dedica o Primeiro-Ministro Modi é chamado de “Hindutva”: o fortalecimento das conexões da Índia com suas próprias raízes hindus. Ou seja, mais uma vez, o modelo democrático dos BRICS revela, com a honrosa exceção do Brasil, uma forte aposta dos Estados e de seus governos, com vasto suporte popular e democrático, nas culturas nacionais, muitas vezes já compreendidas (ou auto-compreendidas) como civilizações distintas entre si e das demais civilizações existentes no planeta.
Os BRICS são proponentes de uma ordem mundial na qual os Estados-pólo (Samuel Huntington) ou Estados-continente (Giácomo Marramao), ou com maior precisão os “Estados-civilização” (como preferimos) tenham voz e vez em um contexto de multipolaridade e democracia no plano das relações internacionais.
Nessa discussão, interessa menos julgar e valorar os arranjos político-institucionais das democracias que acompanham o Brasil nos BRICS. China, Rússia, África do Sul e Índia são povos democráticos à sua moda, segundo suas constituições e suas tradições jurídico-políticas, todos eles orientados pelo amor à sua própria cultura, à nação gerada pela cultura e ao Estado que a cultura constrói e reconstrói no curso da História.
Aí talvez resida a nossa maior miséria como brasileiros. Temos uma cultura tão nossa que o grande Darcy Ribeiro reivindicava que nos reconhecêssemos como uma Civilização Brasileira, em formação mas já suficientemente autônoma. Temos uma nação com valores comuns, compartilhados por todos os brasileiros e brasileiras, que traria orgulho a quaisquer nacionais de outros países e costuma gerar imensa admiração de nacionais de outros países diante dos modos e afetos cultivados na Brasilidade. Temos um Estado construído a duríssimas penas, com toda sorte de objeções, a começar da abjeta Doutrina Monroe, com a qual em 1823 reagiram à fundação do Império do Brasil em 1822, e vindo de onde viemos (Portugal?!), com uma elite afortunadamente mestiça que diluiu o sangue português, tirando de nós intermináveis obscurantismos e nos legando o jeitinho brasileiro, que nos devia fazer ainda mais felizes e orgulhosos.
Mas, não. A autoimagem do brasileiro vem sendo massacrada nos últimos trinta anos de tal forma que não possa mais existir a Brasilidade, mas sim uma rede absolutamente fragmentada não de minorias, mas de “nanorias”, nas quais nem mesmo dentro de uma minoria é possível construir coletividades. Logo aparecem “interseccionalidades” ou novas categorias de classificação que tem apenas um sentido: enquanto chineses são chineses, russos são russos, sul-africanos são sul-africanos, e indianos são indianos, brasileiros são “latino-americanos” divididos etnicamente, ou por “gênero”, ou por letras que se vão adicionando a um alfabeto normalizante e normativo, ou por fenótipos de tons de pele, ou por qualquer nova forma de impedir a unidade cultural, nacional ou civilizacional brasileira.
A estupidez e a alienação defendem quaisquer identidades da moda, mas proíbem a identidade brasileira. Melhor dizendo: Mentes sombrias querem impedir de todas as formas o democrático autoreconhecimento dos brasileiros e brasileiras. Até quando?
*José Luiz Borges Horta é Professor Titular de Teoria do Estado na Universidade Federal de Minas Gerais e professor visitante sênior PrInt-CAPES na Facultat de Filosofia da Universitat de Barcelona. Comparece às urnas desde as eleições brasileiras de 1978, embora, por preconceito etário, só tenha podido votar a partir de 1989. Contato: zeluiz@ufmg.br