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A “guerra fria” na África que nunca acabou

A “guerra fria” na África que nunca acabou

Acredito que, mesmo quase nunca estando nos holofotes da mídia internacional, os eventos que ocorrerão na África no futuro próximo terão um papel essencial na guerra pela hegemonia global que muitos já acreditam que veremos nas próximas décadas.

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08-09-2024 às 08h:48

Gustavo Lima e Santos*

Durante a Guerra Fria (1947-1991) as duas superpotências da época dividiram o mundo em duas zonas de influência. Esta cisão foi sentida de formas diferentes em cada região do planeta, por exemplo o continente europeu foi dividido de forma limpa e respeitada, para evitar um conflito direto, enquanto os outros continentes do mundo não tiveram a mesma sorte. Nas Américas vimos dezenas de golpes de Estado e a instalação de regimes ditatoriais. Na Ásia vimos um conjunto de guerras, com a das Coreias e a do Vietnã estando entre as mais sangrentas do século XX. E na África vimos o uso generalizado de mercenários, como o francês Bob Denard, que lutavam por quem quer que pagasse por seus serviços. Tal cenário internacional, porém, encontrou o seu fim com a dissolução da União Soviética (URSS) em 1991 e com a instauração dos Estados Unidos da América (EUA) como hegemonia global. As Américas reinstituíram suas democracias nas décadas de 70 e 80, as guerras americanas na Ásia tiveram suas conclusões, e o mercenarismo se tornou crime internacional em 1989. Felizes seríamos se nossa história acabasse aqui, como anunciado por Francis Fukuyama.

Com a proibição dos mercenários, um novo agente internacional surge, as Empresas Militares Privadas (EMPs). Estas empresas, reconhecidas internacionalmente como não mercenárias, são contratadas por empresas privadas e por Estados, oferecendo serviços de natureza bélica, que podem ir desde treinamento militar e venda de armas a escolta especializada e combate direto. Basta nos lembrarmos da EMP sul-africana, Executive Outcomes, que foi contratada pelos governos da Serra Leoa e da Angola para intervir militarmente em seus países durante a década de 1990, efetivamente alterando seus cenários políticos. Desde então, a presença de EMPs no continente africano nunca deixou de existir, com soldados do Grupo Wagner estando entre os últimos a chegarem no continente. Com essas questões em mente, não podemos deixar de perguntar sobre quais os interesses que essas empresas têm na África e o que a presença delas implica para o futuro da região.

Então, quais são os interesses que norteiam essas empresas? Como mercenários modernos, estas empresas privadas vivem em função dos interesses de seus acionistas e tem como meta o aumento de sua margem de lucro, como qualquer empresa privada no sistema capitalista. Pelo menos no papel. A realidade, no entanto, é bem mais simples. Sim, lucro e a lógica neoliberal fazem parte do funcionamento das EMPs, mas antes disso, elas trabalham como instrumentos de política externa de seus Estados de origem. Por mais que o discurso delas defenda que elas são agentes liberais do mercado mundial, suas ações mostram que suas atividades sempre se alinham aos interesses internacionais de Estados e de empresas supranacionais. E isto não era diferente para a EMP russa, Grupo Wagner, que tamanho era o seu alinhamento aos interesses russos que, eventualmente, ela foi anexada ao Exército russo, após o acidente aéreo que matou seus os líderes, Dimitri Utkin e Yevgeny Prigozhin.

Apesar dessa anexação, as atividades realizadas não alteraram muito, o que pode ser exemplificado pelas operações da EMP na África antes e após a reconfiguração da empresa. A empresa já tinha operações no continente africano antes da anexação, lutando para garantir o acesso russo a recursos naturais da região. No entanto, veremos depois dessa reconfiguração o recém-formado “Corpo Expedicionário”, apelidado também de “Corpo Africano”, composto por soldados da inteligência militar russa que são ex-funcionários do Wagner, oferecendo um novo serviço aos Estados africanos, o chamado “pacote de sobrevivência de regime”. Esses “pacotes” são compostos por uma série de serviços oferecidos aos regimes políticos, como assistência militar e ajuda tecnológica e política aos autocratas para aumentar sua popularidade interna e proteção econômica e política via Kremlin, em troca de acesso a recursos naturais estrategicamente importantes. Esse novo “serviço” oferecido é curioso por alguns motivos: primeiro, ele parece ser fruto do que o Instituto Polonês de Assuntos Internacionais (PISM) chamou de uma atenção russa na África fortalecida após a reconfiguração da EMP; e, segundo, porque ele mostra um alinhamento ainda maior dessas atividades com a política externa russa, que tem como um de seus objetivos de política externa prover assistência aos aliados da Rússia, garantindo sua segurança e desenvolvimento através da eliminação dos vestígios da dominação americana e de seus aliados na comunidade internacional, criando condições para que todos Estados adquiram as ferramentas necessárias para renunciarem às ambições hegemônicas e neocoloniais.

Esse contexto nos mostra que a “guerra fria” nunca acabou de verdade na África. Para entender melhor isso podemos usar o exemplo do Mali. Até 2022 os militares franceses ainda estavam presentes no país por meio de uma missão da ONU conhecida como Minusma. No entanto, segundo Edwige Sorgho-Depagne, analista de política africana que trabalha para a Amber Advisers, a presença dos franceses nunca foi bem-vinda, mas sim tolerada, pois tinham a responsabilidade de ajudar na crise de terrorismo em andamento no Sahel. No entanto, após 10 anos sem encontrar uma solução para a crise, e com os russos apresentando uma alternativa, a junta militar no poder no Mali ordenou que os militares franceses deixassem o país, optando por depender do antigo Grupo Wagner para manter sua segurança interna e isso foi antes da reconfiguração da empresa e do fortalecimento do interesse russo no continente africano. Desde a anexação do Grupo Wagner ao Exército russo, vemos que a Rússia já estabeleceu contratos com o Níger, com um relatório do Instituto Real de Serviços Unidos (uma instituição britânica de pesquisa em defesa e segurança) defendendo que estes pacotes têm como objetivo um ataque mais coordenado aos interesses ocidentais. Com isso, a Rússia e o Níger criam um cenário que ameaça o acesso francês ao urânio nigeriano, aumentando ainda mais a dependência do setor energético francês do urânio fornecido pela Rússia.

Então, com esse interesse e direcionamento de investimentos russos na África, que aparecem de forma não por acaso em um momento em que os EUA se mostram cada vez mais focados no Indo-Pacífico e que a atenção européia já se apresenta saturada pela guerra na Ucrânia, devemos também nos perguntar: qual o futuro da África? Com o grande descontentamento e frustração já sentidos por todos os países africanos quanto à hierarquia das preocupações ocidentais, visto a imensa disparidade de recursos e atenção ocidentais dadas a Ucrânia ou a Gaza, em conjunto com a presença redobrada no continente de opositores ocidentais como Rússia e China, o que se esperar dos países africanos, principalmente daqueles que ainda se entendem como aliados dos EUA e seus aliados? Acredito que, mesmo quase nunca estando nos holofotes da mídia internacional, os eventos que ocorrerão na África no futuro próximo terão um papel essencial na guerra pela hegemonia global que muitos já acreditam que veremos nas próximas décadas.

Para saber mais:

INWOOD, Joe.; TACCHI, Jake. Wagner in Africa: How the Russian mercenary group has rebranded. BBC, [S. l.], 20 fev. 2024. Disponível em:   https://www.bbc.com/news/world-africa -68322230. Acesso em: 25 abr. 2024.

 SMITH, Elliot. Russia offering African governments “regime survival package” in exchange for resources, research says. CNBC, [S. l.], 27 fev. 2024. Disponível em: https://www.cnbc.com/2024/02/27/russia-offering-african-governments-regime-survival-package-report.html.

TROPAS francesas deixam o Mali sob acusações de neocolonialismo. G1, [S. l.], 15 ago. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia /2022/08/15/tropas-francesas-deixam-o-mali-sob-acusacoes-de-neocolonialismo.ghtml.

*Gustavo Lima e Santos é mestre em International Public Relations and Public Diplomacy pela Sookmyung Women’s University (SMWU), em Seoul, na Coréia do Sul. Bacharel em Ciências do Estado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduando em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Membro da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Integra o Grupo de Estudos Estratégicos Raul Soares de Moura. Contato: gustavosantos0912@gmail.com

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