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Tempos de sentir engulhos, até vomitar

Tempos de sentir engulhos, até vomitar

Hipocrisia pode definir o quadro, mas os interesses de ocasião talvez envolvam falta de caráter e revelem manipulação. Talvez boa explicação esteja na posição da fala, quando se é oposição ou situação, como ocorre na política

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06-09-2024 às 09h:36

Rogério Reis Devisate*

Parece que o mundo virou do avesso. O certo virou errado, o errado virou certo e, entre esses extremos, há toda sorte de situações que ora parecem isso, ora aquilo. Muitas das coisas que vemos e ouvimos nos faz sentir engulho, enjoo e aversão, algo como aquela sensação de quem leva um soco no estômago e fica estupefato, paralisado diante do inesperado.

Uma dessas situações ocorre quando descobrimos a capacidade de alguém fazer exatamente o oposto do que defendeu por muito tempo. De fato, surpreende como alguns tanto bateram no peito para falar em valores e conceitos que, simplesmente, abandonaram a partir de certo momento.

É importante considerar que os fatos não mudam e, como dizia o historiador Moniz Bandeira, citando o filósofo alemão Oswald Spengler, na história “não há ideais, mas somente fatos, nem verdades, mas somente fatos”, nos ensinando que as “palavras não mudam a realidade dos fatos.”

Hipocrisia pode definir o quadro, mas os interesses de ocasião talvez envolvam falta de caráter e revelem manipulação. Talvez boa explicação esteja na posição da fala, quando se é oposição ou situação, como ocorre na política: enquanto oposição, se joga pedras e se faz discursos belicosos e críticas duras e intensas; quando situação, se ataca quem assim age.

Não se fala, aqui, sobre mudanças de opinião. Essas são saudáveis e, quando não decorrem de interesses menores, revelam ser fruto de amadurecimento. Todavia, no mais das vezes, não é o que percebemos. Há variantes disso noutras relações humanas e não é incomum que, uma vez no poder, alguém contrarie ideias e práticas que sempre defendeu ou criticou, a ponto de gerar dúvidas se o poder os corrompeu ou se apenas permitiu que se revelassem, como de fato são.

O mundo está cheio de maledicência e de gente que adora apontar os erros dos outros, por desdém, inveja ou por não ter tido certa ideia ou iniciativa.

Donatella di Cesare fala no ressentimento dos que “tramam pelas costas, que fazem passar por verdades absolutas os seus interesses disfarçados” para “transmutar a mediocridade em excelência, converter os defeitos em virtudes, as culpas em méritos. Essa inversão já foi desmascarada por Nietzsche em Genealogia da Moral.”

É gente que fala em defender isso ou aquilo, mas que, no fundo, usam das circunstâncias a seu favor e tudo fazendo para atingir os seus fins. Fácil é criticar “a obra pronta”, pois colocar a mão na massa muita gente não quer. Muitos adoram posar para a fotografia, sem se importar com quem criou e trabalhou para chegar ao momento fotografado.

Não se deve acreditar em tudo o que se vê, nem em tudo o que se escuta. As posturas, as atitudes, o que se faz ou não, são as coisas importantes. Imagem não é tudo: com o tempo se desbota e se desgasta. As evidências que ficam e valem são as construções, os tijolos colocados nas paredes do tempo, edificando obras importantes, construtivas, empáticas e úteis. Mas valem as que atendem a muitos do que as coisas que servem só para a mesquinhez humana.

Sob outro enfoque, nos tempos antigos, os melhores capitães do mato costumavam ser antigos cativos. A referência nos vem à memória quando vemos governos, ditos progressistas, sendo mais fazendários do que antigos governantes conservadores.

Só para lembrar, a Independência do Brasil e os movimentos libertadores, mobilizados por Tiradentes e outros, dentre tantas bandeiras tiveram o chamado Quinto dos Infernos como o grande motivo, sendo notório que correspondia a imposto com alíquota de 1/5 ou 20%. Hoje estamos com até 27,5% de imposto de renda para pessoas físicas e o novo iminente imposto, chamado IVA - Imposto sobre Valor Agregado, deve chegar aos 28% de alíquota, o que significa a maior do mundo entre os países que o adotaram!

Nosso País é um dos maiores do mundo, imenso, rico e próspero. Todavia, ainda derrapamos na largada, em alguns assuntos. Tivemos o maior feudo do mundo, de Garcia D`ávila, indo de Salvador ao Maranhão. Temos a cobiçada Região Amazônica, as imensas reservas de água doce do Aquífero Guarani e outros, grandes rios como o Amazonas, o Paraná, o Tocantins e o São Francisco, além de imensurável produção agrícola e de petróleo, minérios, etc. Como visto, nem sempre esses conceitos de maior ou maiores do mundo são positivos, na medida em que ter o maior imposto do mundo não agrada, conceitualmente, mormente quando a saúde, educação, saneamento e segurança não são “de primeiro mundo”.

Será que certas práticas que temos visto por aí seriam recebidas com a naturalidade de quem as pratica, se tivessem sido realizadas quando grupos de situação foram oposição? Grevistas de outrora são contra a greve, hoje. Mobilizadores de passeatas e palavras de ordem se tornaram contra esses atos pelos opositores. Para se ter isento parâmetro a respeito, será que não haveria ruas cheias de protestos se tal proposta resultasse do governo passado ou de outros, mais antigos e tidos por conservadores ou “de direita”?

A propósito, a Revolução Francesa fez coisas que não toleraria que o Antigo Regime fizesse e, desde então, o mundo não mais foi o mesmo. Todavia, quando um governo de esquerda como o venezuelano age colocando os tanques nas ruas contra o povo e realizando prisões, inclusive de crianças, realiza atos diferentes daqueles que a esquerda questionava contra a monarquia russa e os ditadores da Alemanha, Cuba e Chile? Nessa linha, quando chega ao poder, a esquerda vira direita, ou, noutras palavras, progressistas viram conservadores?

Antes de encerrar, falam alto as reflexões de Voltaire sobre a tirania, quando disse que não desejava viver sob nenhuma, mas que “detestaria menos a tirania de um só do que a de vários”, acrescentando que se um pratica injustiça, poderia vencê-lo de alguma forma e que a “companhia de graves tiranos é inacessível” e “quando não é injusta é no mínimo impiedosa, e jamais concede favores”.

Essas questões envolvem conceitos, pré-conceitos, tortos conceitos, que o limitado espaço dessas linhas não pode, mesmo, nem de longe tentar desenvolver, o que não impede este artigo de nos levar à reflexão sobre o uso da razão, para que possamos perceber coisas que a manipulação de informações e o emocional e a psicologia das massas, de que falava Freud, influencia e define grande parte das situações que vemos pelo mundo.

Por fim, os movimentos de freio econômico são, em grande parte, estratégia política global, como nos faz refletir as reformas da previdência que tivemos e a reflexão recente, do Banco Mundial, de que necessitaremos de mais uma. Na mesma linha, convém refletir que a reforma do judiciário, ocorrida aqui, não foi inciativa nacional pura, decorrendo do Documento Técnico 319, de 1996, do Banco Mundial. Estes exemplos são, apenas, gotas no oceano de coisas que vemos desde os tempos do Descobrimento e que demonstram certo afinamento dos governos ao alinhamento internacional que, durante discursos e campanhas, muitos criticaram em passado não tão distante. Curiosamente, foram realizadas por governos mais à esquerda.

Em linguagem popular se fala em “engolir sapos” que, decerto, são mais fáceis de digerir do que as tartarugas, com os seus rígidos cascos. Basta ler os jornais e observar certas ocorrências para passar de um engulho a outro e deste ao seguinte, até que o acúmulo seja tanto que não consigamos engolir ambos e o vômito seja a forma de expelir tudo. A Democracia padece, a República está febril e a luz da pujança e paz social e econômica parece estar cada dia mais distante.

*Rogério Reis Devisate é advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ.  Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilos e Gafanhotos: Grilagem e Poder. Co-coordenador da obra Regularização Fundiária Experiências Regionais, publicada pelo Senado Federal.

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