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As novas (ex)posições do Museu Mariano Procópio

As novas (ex)posições do Museu Mariano Procópio

Museu (re)visitado. Em março de 2023 inaugurou-se a exposição “Fios de Memória: a formação das coleções do Museu Mariano Procópio”, que ocupa as dez salas do segundo pavimento do prédio anexo

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25-01-2024 às 10:06h.

Sérgio Augusto Vicente*

Em 31 de maio de 2023, o Museu Mariano Procópio concluiu a última etapa de sua plena reabertura às cidadãs e cidadãos de Juiz de Fora, de Minas Gerais e do Brasil. Amplamente repercutida nas mídias, a notícia ultrapassou os limites do regional, reverberando no Jornal Nacional e na Globo News. O sucesso de público, que reflete uma demanda reprimida há tempos, tem sido surpreendente: entre os meses de junho e dezembro de 2023, 73429 pessoas visitaram o prédio Mariano Procópio (prédio anexo), enquanto 62148 visitaram a Villa Ferreira Lage (ou Castelinho).

Com uma média dessa de público, o Museu Mariano Procópio – também conhecido como a primeira instituição do Estado de Minas Gerais a erigir um prédio voltado especificamente para atender às funções de um espaço museológico – não poderia ter recebido melhor homenagem pelos seus 102 anos de inauguração oficial por Alfredo Ferreira Lage (1865-1944). Em junho de 2022, a nova gestão municipal sinalizou para um processo de gradual reabertura de toda a edificação histórica, que teve como primeira etapa a montagem, no primeiro pavimento do prédio Mariano Procópio (prédio anexo), de uma exposição alusiva aos duzentos anos da Independência do Brasil, intitulada “Rememorar o Brasil: a Independência e a construção do Estado-Nação”.

Em março de 2023, por sua vez, inaugurou-se a exposição “Fios de Memória: a formação das coleções do Museu Mariano Procópio”, que ocupa as dez salas do segundo pavimento do prédio anexo. Ao longo do circuito expositivo, o visitante tem a oportunidade de conhecer e refletir sobre a história e os diferentes aspectos do colecionismo de Alfredo Ferreira Lage e do Museu Mariano Procópio, quais sejam: as diferentes facetas da trajetória de Alfredo Ferreira Lage; a concepção de “gabinete de curiosidades” que norteava a formação intelectual de caráter enciclopédico de suas coleções; a influência feminina no perfil colecionista do fundador; o projeto de perpetuação das memórias do Império Brasileiro; as mudanças e permanências no perfil colecionista da instituição após a morte de Alfredo e a posse de sua sucessora, a diretora Geralda Armond, que geriu o museu por 36 anos (1944-1980); e, por fim, diversas reflexões sobre o papel do museu na contemporaneidade, como a incorporação de memórias, narrativas e identidades plurais sobre os povos originários de origens indígena e africana e a abordagem dos afrodescendentes como personagens históricos e atores sociais ativos na construção da história do Brasil. Nesse sentido, também se sinalizou para a importância de o museu ser visto como espaço não-formal de educação e produtor de conhecimentos multidisciplinares – inclusive, no campo da conscientização ambiental.

Reaberto o prédio Mariano Procópio (prédio anexo), era a vez de devolver à população a Villa Ferreira Lage (ou Castelinho). Essa tão esperada reabertura aconteceu em 31 de maio, em pleno aniversário da cidade de Juiz de Fora. Construído por Mariano Procópio Ferreira Lage para servir de casa de veraneio de sua família e local de hospedagem de D. Pedro II e sua comitiva imperial na inauguração da Estrada de Rodagem União e Indústria em 1861, o Castelinho (re)apresenta aos públicos a ambientação de uma residência de uma família da elite senhorial brasileira do século XIX. Composta de um torreão, dois pavimentos com 14 cômodos e um porão semi-enterrado, a edificação foi rapidamente preenchida com os objetos museológicos cuidadosamente depositados na Reserva Técnica da instituição.

Tanto o circuito expositivo dessa edificação oitocentista quanto o das duas exposições do prédio Mariano Procópio (prédio anexo) foram concebidos por uma equipe curatorial constituída de três historiadores (Sérgio Augusto Vicente, Rosane Carmanini Ferraz, Priscila da Costa Pinheiro), duas museólogas (Alice Colucci e Vera Vargas), um conservador-restaurador (Aloysio Gerheim) e um supervisor de Museologia (Eduardo de Paula Machado). Em menos de um ano, a referida equipe  conseguiu projetar intelectualmente e montar três grandes e novas exposições, atendendo à demanda de integral reabertura do museu aos públicos. É importante destacar que não se trata apenas de mera “remontagem” do circuito expositivo, mas da construção de novas estruturas narrativas pautadas em renovações historiográficas e museológicas desenvolvidas nas últimas décadas.

Uma das várias novidades trazidas pelas exposições é o porão da Villa Ferreira Lage, ressignificado como espaço expositivo aberto à visitação pública. E não apenas isso: vale destacar a importância de sua ressignificação como espaço dedicado às artes e à reflexão sobre os “mundos do trabalho”, com o objetivo de lançar os holofotes sobre as vozes silenciadas na história, cujas memórias sofreram processos de apagamento pelos discursos hegemônicos da classe senhorial e da sociedade patriarcal.

Não há provas empíricas ou evidências históricas que sustentem a afirmação de que o porão cumpria a função de senzala. De todo modo, porém, sabe-se que a escravidão, fazendo-se presente na sociedade brasileira do século XIX, sobretudo entre as famílias aristocráticas, também se fez presente naquele espaço de trabalho, desde os mais elementares cuidados com a casa e o armazenamento de mantimentos, até a preparação das refeições posteriormente servidas na luxuosa mesa da sala de jantar.

Esteve longe de ser fortuita, nesse sentido, a escolha do poema “Perguntas de um trabalhador que lê”, de autoria de Bertolt Brecht, para figurar na entrada do porão. O poema participa da exposição no momento em que o público se sente impactado pelo contraste entre, de um lado, o mundo da riqueza, do status e da ostentação visualizado nos dois pavimentos superiores, e, de outro, a rusticidade, a segmentação e o isolamento propiciados por aquele espaço.

Nesse sentido, “Quem construiu Tebas?” – questionamento presente no poema de Brecht – equivaleria à pergunta “Quem construiu a Villa, carregou seus tijolos, suas pedras e dela cuidou para que esse patrimônio subsistisse às intempéries da história?”. Tais questionamentos não servem apenas para refletirmos criticamente sobre o passado, mas, sobretudo, para pensarmos no tempo presente, quando nos perguntamos sobre quem restaurou as paredes daquela edificação e sobre quem trabalhou arduamente para que aquele espaço fosse reaberto à população. Por isso, além da ficha técnica ter sido exposta ali, as paredes de diversos cômodos serviram de suporte para registros fotográficos dos trabalhos dos restauradores.

O porão se transformou, ainda, em espaço para expor os registros fotográficos de participantes de um concurso de fotografia amadora recentemente promovido pela instituição, intitulado “Olhares sobre o Museu Mariano Procópio”, no qual se podem apreciar, por exemplo, as miradas poéticas dos Srs. Itauan Alves dos Santos e Renato Silva, dois trabalhadores atuantes na segurança e manutenção do parque que circunda aquela edificação. Tudo isso contribui sobremaneira para fortalecer o sentimento de pertencimento de funcionários e representantes das comunidades ao espaço visitado.

Por fim, o porão oferece aos públicos uma sala audiovisual, convidativa a um breve repouso, após longa jornada de visitação por dezenas de salas. Nesse espaço, atualmente se pode assistir a um filme com diversas imagens digitalizadas de uma película produzida no Museu Mariano Procópio nos anos 1930/1940, pelas mãos e olhares do cinegrafista amador Arthur Tavares Machado. Além de assistirem aos personagens históricos em movimento – como Alfredo Ferreira Lage, Geralda Armond e vários outros –, os visitantes podem observar detalhes de objetos exibidos no circuito expositivo daquela época, muitos dos quais figurando nas exposições atualmente em cartaz na instituição, possibilitando estabelecer comparações entre presente e passado quanto à forma de expor esses objetos.

Apesar dos inúmeros desafios enfrentados na montagem das exposições, devido à necessidade de utilização criativa dos recursos de que se dispunha na instituição, a equipe curatorial conseguiu entregar três exposições cujas narrativas e conteúdos estão em consonância com as demandas da chamada museologia social, que se pauta na busca de reflexões críticas sobre os objetos, os processos históricos, suas ambiguidades, contradições e conflitos. Além disso, foi possível  escapar, em diversos sentidos, de narrativas canônicas, que se dedicavam ao culto personalista aos chamados “grandes vultos” da história oficial brasileira, à linearidade de uma narrativa tripartite da história do Brasil, que “congelava” a trajetória dos povos originários e afrodescendentes em determinado período e recorte temático da história – como o período colonial e a escravidão, por exemplo.

A reabertura integral do museu aos públicos é, sem dúvida, um momento histórico; não isento, é claro, de grandes desafios enfrentados e que ainda estão por vir. Montar três grandes exposições em menos de um ano apenas foi possível graças a todo o trabalho prévio relacionado à pesquisa, ao estudo, à conservação e à comunicação do acervo por parte da diminuta equipe que compõe o Departamento de Acervo Técnico da instituição. Produção de instrumentos de pesquisa (como levantamentos, inventários e catálogos), conservação preventiva, produção de artigos para revistas acadêmicas e de divulgação científica, organização e processamento técnico do acervo, bem como o auto-investimento dos servidores em capacitação (cursos de curta e média duração, pós-graduação lato senso, mestrado e doutorado) e várias outras atividades realizadas ao longo dos últimos anos, são trabalhos “silenciosos”, feitos nos bastidores, de forma gradual, mas que se mostraram imprescindíveis à construção e maturação de conhecimentos e saberes necessários à tecitura de novas narrativas e interpretações dos objetos no espaço museal. Um espaço vivo, mutável, que nunca pode se conformar com os papéis de “cofre” e “templo”, mas crescer cada vez mais como “museu-fórum”, de debates democráticos e de construção coletiva de novos e múltiplos conhecimentos.

Para “Rememorar o Brasil” através do Museu Mariano Procópio, é preciso cuidar, zelar e estimular a formação de uma enorme e infinita trama de “Fios de Memórias”, da qual fazemos parte como cidadãos e cidadãs antenados em pensar projetos de sociedade que articulam presente, passado e futuro como uma grande “tenda” em que entrem todos – rememorando aqui o poema “Tecendo a manhã”, de João Cabral de Melo Neto, plotado numa das paredes da instituição. No entanto, nada disso faz sentido se a luta presente e futura não tiver como objetivo construir condições para que a instituição se mantenha de portas abertas e com a potência e a robustez necessárias para continuar cumprindo seu papel social.

 

chaves

trancadas

portas

abertas

memórias

encadeadas

*Doutor e Mestre em História, Cultura e Poder pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); historiador do Museu Mariano Procópio, de Juiz de Fora

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  5 comentários

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Parabéns! Tenho acompanhado as suas publicações por aqui. Diário de Minas sempre reunindo excelentes escritores.

Texto muito esclarecedor e didático.

Excelente! Texto de alto nível.

Congratulações Dr Sergio, pelo dedicado trabalho junto à esta pérola nacional, num gigantesco esforço para descortinar o museu para além das fronteiras regionais e quiçá para alçar outras linguas. O trabalho de vocês torna-se fundamental para informar mulhões de pessas sedenta de cultura e arte. Sim, seu relato sobre os bastidores precisa emergir como relevante motivação, mirando os portais da história, passaporte intransferível para entender o agora e o amanhã! Grande abraço. A.A.Garcia

Mais uma vez, Sérgio Vicente nos brinda com um texto memorável, no qual a categoria trabalho é chave. Prenhe de referências, de Brecht a João Cabral, fecha, digo, abre, com claviculário. Melhor convite não poderia haver. Até lá!

 

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