
A ideia é que o treinamento não apenas capacite militares de diferentes forças. CRÉDITOS: Freepik
Getting your Trinity Audio player ready...
|
11-03-2025 às 08h54
Marcelo Barros*
Nas últimas décadas, o conceito de liderança militar passou por profundas transformações. Um dos recursos mais emblemáticos nessa área – a chamada Pista de Liderança – guarda raízes históricas que remontam ao Exército Alemão, logo após a Primeira Guerra Mundial.
Hoje, essa mesma ferramenta foi adaptada e está em plena atividade no Centro de Instrução Almirante Sylvio de Camargo (CIASC), na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, sendo considerada a primeira pista de liderança da Marinha do Brasil (e do país). Desde então, outras pistas surgiram em quase todos os Distritos Navais, promovendo um treinamento de alto nível aos militares da Marinha.
O responsável direto por trazer esse modelo inovador de treinamento foi o Suboficial Armamentista Mergulhador de Combate Oto, um militar com longa história de estudos e intercâmbios com as Forças Armadas dos Estados Unidos.
Para entender como essa tecnologia chegou até o Rio de Janeiro, é preciso olhar para a Europa do início do século XX. Após a Primeira Guerra, o Exército Alemão enfrentava restrições severas impostas pelas potências vencedoras. Com efetivos reduzidos e a urgência em formar novos líderes, psicólogos militares alemães desenvolveram uma estrutura de treinamento prático, baseada em simulações de missão e em testes de resistência física e mental. Nascia ali a semente do que hoje chamamos de “Pista de Liderança”.
A ideia original era simples, mas revolucionária: usar cenários desafiadores, onde os participantes tivessem de resolver problemas em equipe, reforçando valores como disciplina, compromisso com a missão, empatia e tomada de decisão sob pressão. O sucesso foi tamanho que, no pós-Segunda Guerra Mundial, a metodologia foi absorvida pelas forças aliadas, entre elas o Exército dos EUA, a Marinha Americana e a Força Aérea Britânica.
Nos Estados Unidos, a Pista de Liderança ganhou adaptações e uma expansão ainda maior, tornando-se parte do currículo de academias militares de ponta, como West Point (Exército) e Annapolis (Marinha). Posteriormente, o mesmo modelo inspirou treinamentos no meio civil, onde empresas privadas e universidades passaram a adotar práticas de “liderança em ação”, criando cenários de colaboração e resolução de conflitos que simulassem ambientes corporativos competitivos.
No final de 2010, o então 3º Sargento AM MEC Oto foi designado para o curso especial dos US Navy SEALs (BUD/S). Entretanto, durante os exames médicos nos EUA, detectaram nele um traço de anemia falciforme; embora não o impedisse de seguir em operações como mergulhador de combate no Brasil, aquele resultado era uma contraindicação no rigoroso processo de seleção norte-americano para Operações Especiais.
Esse obstáculo acabou abrindo as portas para que Oto fosse realocado ao curso de liderança da Marinha Americana, sediado em Pensacola, Flórida: o International Professional Enlisted Leadership (IPEL). Esse programa abrange duas áreas principais, teórica e prática, realizadas ao longo de 5 semanas, com visitas técnicas a Organizações Militares e Civis – destacando-se, por exemplo, a sede da CNN em Atlanta, Geórgia. Seu objetivo é apresentar a visão de liderança da Marinha Estadunidense e a figura central do Master Chief Petty Officer of the Navy (o Suboficial Mor), além de exercitar competências de liderança em cenários de alta complexidade.
OTO, O PRIMEIRO PRAÇA BRASILEIRO NA LIDERANÇA DA US NAVY
Até então, poucos brasileiros haviam frequentado cursos de liderança de alto nível nos EUA, especialmente no âmbito das praças. Oto tornou-se, assim, o primeiro militar brasileiro (e possivelmente da América Latina) a concluir formalmente esse treinamento específico da US Navy.
Retornando ao Brasil, levou consigo todos os materiais, apostilas e, principalmente, a “planta baixa” da Pista de Liderança. Na época, o Comandante Marques Soares, do CIASC, tomou conhecimento do potencial do método e, em conjunto com Oto, formatou a primeira Pista de Liderança da Marinha no Brasil, instalada justamente na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro.
No Centro de Instrução Almirante Sylvio de Camargo (CIASC), a estrutura da pista foi construída seguindo princípios semelhantes aos dos EUA: percursos de obstáculos, desafios de raciocínio sob pressão, passagens suspensas, simulações de salvamento e outras dinâmicas. Cada etapa exige capacidade de liderança, empatia, tomada de decisão e cooperação entre os participantes.
Desde a inauguração, o curso vem ganhando força e notoriedade. A experiência se expandiu a outras Forças, como Exército e Aeronáutica, que também enviaram representantes para aprender e aplicar o modelo. O Suboficial Oto é reconhecido como o pioneiro na adoção prática desse sistema, que hoje influencia a formação de militares de diferentes graduações.
Nos Estados Unidos, a escolha de líderes é formalmente decidida pelo comando, mas se baseia de modo significativo no conceito de influência positiva vinda de subordinados – “influência” sendo a coluna principal que sustenta toda a grade de Liderança. Já no Brasil, essa cultura de valorizar o feedback de quem está “na ponta” ainda enfrenta desafios.
Oto destaca que, por vezes, há favoritismo ou falta de accountability, mas a aplicação da Pista de Liderança auxilia na mudança de mentalidades. Por meio dela, valores como espírito de corpo, retidão, justiça e altruísmo são vivenciados de forma prática, reduzindo a distância entre os níveis hierárquicos e fortalecendo o senso de grupo.
Embora tenha nascido no contexto de guerras mundiais, a Pista de Liderança não se restringe às necessidades militares. Muitas instituições fora do Brasil, e até mesmo em algumas empresas nacionais, veem a possibilidade de adotar a metodologia como forma de treinamento de equipes e formação de gestores. Simulações de adversidades e cenários reais de pressão podem ajudar a identificar quem se destaca em liderança, cooperação e tomada de decisões.
Para Oto, “onde existe um grupo humano, há liderança e seguidores, seja na Marinha, em uma ONG ou em uma grande corporação. E podemos adaptar o modelo para qualquer ambiente”.
Com o conceito aberto também ao meio civil, existe a perspectiva de que a Pista de Liderança continue a se disseminar. A ideia é que o treinamento não apenas capacite militares de diferentes forças, mas também inspire instituições civis a utilizarem esses princípios de liderança na formação de equipes mais coesas, responsáveis e empáticas.
“Liderança sólida beneficia qualquer tipo de organização. Se a gente começa na nossa própria comunidade e depois expande, podemos mudar a mentalidade de muita gente, criando uma cultura de responsabilidade e empatia”, afirma Oto.
*Marcelo Barros é jornalista