
Inteligência Artificial para otimizar o desempenho das quadrilhas e do crime organizado. CRÉDITOS: Divulgação
10-03-2025 às 09h19
Caio Brandão*
A pachorra do complexo prisional estava subvertida, porque a ordem vigorante dos procedimentos de rotina confrontava as novidades oferecidas pela inteligência artificial. Assim, foi criado grupo misto de trabalho, integrado por agentes penitenciários e apenados, estes escolhidos entre internos de bom comportamento e de elevado QI – o famoso quem indicou.
Os guardas do grupo tinham bonificação, ganhavam horas extras e duas folgas a mais no trimestre. Os apenados obtinham permissão de banho de sol adicional, com direito a bronzeador, lanche de atum, com adição de sementes de girassol, aos sábados, e visita íntima, com tolerância para a exibição de filmes eróticos, para estimular a ereção.
Estava tudo provido, mas sem resultado efetivo. Na primeira semana foi tentado pelo grupo, sem sucesso, alcançar a definição de I.A. para facilitar o entendimento dos participantes. Longas e intermináveis discussões aconteciam e culminavam com o cassetete comendo solto e os guardas exaustos.
Os apenados aproveitavam o entrevero intelectual, para resolver as suas diferenças, reforçar o território de gangues e fazer a troca de drogas por maços de cigarros e estiletes.
Era o “céu de brigadeiro”, sem prazo para terminar e com o grupo multiplicando e incorporando vantagens e benesses.
Contudo, fez-se a luz, e um dos chefes de gangue, elegante e educado, conhecido como “Lorde Cabeção”, e que era padrinho de batismo dos filhos da maioria dos guardas do presídio, e de casamento do diretor da instituição, teve ideia genial, aplaudida pelos detentos do grupo.
A novidade era usar a Inteligência Artificial para otimizar o desempenho das quadrilhas e do crime organizado, no projeto que seria conhecido por “Crime sem Fronteiras”. Como metas, minorar a ocorrência de balas perdidas (o que compromete a imagem das quadrilhas); estruturar a logística de transporte, para a coleta do dinheiro oriundo de extorsões e chantagens; alugar e comprar imóveis, quer para depósito de armas, esconderijo ou investimento; criar plano de saúde, com foco também nas prostitutas cadastradas, e no tocante à prevenção de doenças venéreas e distúrbios psiquiátricos.
Além disso, ganharam destaque o recrutamento de profissionais liberais, de artistas e de religiosos, para a disseminação de conceitos subliminares; a criação de instituições financeiras, para esquentar e movimentar o produto das coletas; o recrutamento, nas favelas, de adolescentes de maior potencial, preparando-os para alcançar posições de relevo na sociedade, tais como na magistratura, na política, na polícia, na imprensa e nos clubes de serviço; além de incrementar a venda paralela de assinatura de tv a cabo ; a distribuição de botijões de gás e o roubo de celulares nas praias e nos grandes eventos. Finalmente, alguém lembrou a necessidade de um fundo destinado à aposentadoria de meliantes e sustento de suas famílias, em caso de morte ou encarceramento desses “soldados”, em cenário de confronto com as forças policiais, no que foi o proponente longamente aplaudido.
À última hora chegou contribuição de parlamentar campeão de votos, sugerindo acrescentar uma câmara de arbitragem, para a solução de conflitos internos de jurisdição e disputa de territórios, bem como comitê de “compliance”, para prevenir eventos de corrupção e desvios de conduta de seus membros, porque o “Crime sem Fronteiras” não admite quebra de contratos e de compromissos assumidos. Por derradeiro, foi aprovada por unanimidade, e sob alarido emocionado, moção em favor da criação de departamento de glamour, para a construção de imagem positiva e heroica de combatentes integrantes do corpo efetivo do “Crime sem Fronteiras”.
Dito isto, os guardas foram cooptados a colaborar, com ideias e sugestões, mediante robusta gratificação semanal, e o pacto de rigorosa discrição.
Assim, foram à luta, com Lorde Cabeção liderando e distribuindo ordens e tarefas, depois de acordar, com o grupo, que a IA estaria voltada para a criação de sistemas direcionados ao raciocínio e resolução de problemas. Cabeção era “hacker”, condenado pela invasão de sistemas de bancos privados e tinha habilidades técnicas avançadas em computação. Ele encontrou no grupo a oportunidade de ascender na hierarquia do crime e tinha poucos anos de prisão pela frente, o que era um estímulo.
Lorde Cabeção, de início, procurou contato com outros especialistas em computação, que também cumpriam pena, em diferentes estabelecimentos. Armando Piedade, que esfaqueou a mulher e a sogra, tendo matado o vizinho, que tentou ajudá-las, era homem de confiança, muito religioso, temente a Deus, e conhecia a Bíblia de cor.
– Piedade!!! Exclamou o Lorde, fez contato no Presídio Federal? A turma de lá é competente,” emendou Cabeção, “porque muitos trabalharam em ministérios e tiveram boa formação na área de T.I.
- Mandei recado, Cabeção, mas a coisa lá está agitada, porque o Trump enviou um delegado do FBI, para conhecer o muro da penitenciária, que tem 12 quilômetros de extensão e cinco metros de altura, além de dezenas de sentinelas, e o cara se distraiu e caiu lá de cima. Não morreu, mas está todo quebrado e existe a suspeita de empurrão, com oito envolvidos. Dizem que fizeram um dominó, com um empurrando o outro, para confundir a investigação.
Cabeção se aborreceu, mas tinha esperança em outra penitenciária de renome, na região do Vale do Paraíba, em São Paulo.
– E naquela outra, no “presídio das estrelas”, encontrou o Claudinho Chupeta? perguntou Cabeção.
– Não, chefe, disse Piedade, telefonei várias vezes, mas logo depois da visita íntima, com trigêmeas, o Chupeta foi direto para Campos do Jordão, no velório de uma cafetina, muito celebrada e querida na cidade. De lá não deu mais notícias, sumiu sem deixar rastro
- Assim fica difícil, Armando, retrucou Cabeção, com aspereza. – E no Rio de Janeiro? – Lá vai dar certo, com certeza!
– Achou o Zé da Cinta? perguntou Cabeção. – Não, respondeu Piedade, que acrescentou “o Zé da Cinta foi transferido de Gericinó. Foi levado para o Sanatório Penal, em Guandu, depois de um surto psicótico. Ele acordou cedo na cela, achando que tinha se transformado no Pavarotti, e começou a cantar O Barbeiro de Sevilha, de madrugada, e a ameaçar os detentos com uma navalha. – Quando cantou “Ah, bravo Fígaro, Bravo, bravíssimo, Fortunatíssimo per Veritá” caiu desmaiado. Os presos queimaram colchões, bateram panelas, gritaram e ameaçaram revolta, que felizmente foi contida.” – E aí? perguntou Lorde Cabeção.
-Tudo muito confuso, meu Lorde, disse Piedade.
– Enviei mensagem para a malandragem da região, disse Armando, para fazer o resgate do Zé da Cinta, porque eles conhecem o lugar e têm um sítio de plantação de chuchu e macaxeira, na estrada de Guandu do Sena, perto do restaurante Fazenda do Mineiro. Autorizei o aluguel de um veículo, mas eles encheram a kombi de mulheres e foram acampar no Parque do Mendanha, e ainda tive que pagar pelas barracas, cervejas e pela caixa de som. Felizmente não deu B.O, disse Piedade, porque tinha muita droga no regabofe, e sorriu.
- Assim não dá, reclamou o Cabeção, desse jeito o crime organizado vai continuar deficitário e capengando, sem conseguir aumentar o valor das propinas para melhorar o desempenho e a fazer as cagadas de sempre.
- E os russos, como ficou aquela promessa, de que eles viriam para cá, sem custo, para nos dar assessoria?
- Ah! Meu Lorde, um desastre. Os caras foram assaltados logo na chegada, saindo do aeroporto. O voo foi antecipado e a nossa turma não foi avisada. Vieram três russos. Um saltou do carro dos assaltantes, em movimento, e não mais foi visto, deve ter morrido. Os outros dois ficaram vários dias em cativeiro, dentro de um buraco. O mais velho usava um relógio Rolex falsificado e apanhou muito, porque a turma tentou vender a joia e foi flagrada, e o outro foi seviciado por um tarado, velho conhecido e desprezado pela malandragem.
“E o que foi feito deles? perguntou Cabeção.
– Não sei, disse Armando Piedade, porque estavam dando muito trabalho e a malandragem despachou os dois dentro de um container, com destino à Malásia. Soube que o capitão do navio ouviu gritos, mandou abrir o container e jogou os caras no mar, porque um deles era “trans” e o capitão homofóbico. A última notícia é que foram vistos na praia de Cabo Frio, com um grupo de gays agressivos, protestando contra a pesca predatória de lagostas e a poluição dos mananciais, em São Pedro D’Aldeia, aquela outra praia, próxima a Cabo Frio.
Lorde Cabeção colocou-se de cócoras, tossiu, levantou a cabeça e dirigindo o olhar para Piedade, ponderou, vamos organizar um grupo de oração, rezar novena para São Judas Tadeu, e deixar de lado, por ora, a IA para cuidar do espírito, porque estamos ferrados. Entrementes, Armando, suborne alguém da administração, para melhorar a cantina e ponha lá umas empadas e algumas coxinhas com recheio de requeijão. Deixe sempre um “baseado” de sobremesa.
“O resto fica para depois, vamos dar tempo ao tempo”.
*Caio Brandão é jornalista