A exposição propõe a reflexão sobre o processo de invisibilização de alguns artistas negros que deram importantes contribuições à arte juizforana, ao resgatar a trajetória de figuras como Xisto Valle de Assis.
02-12-2024 às 10:10
Helena Monteiro*
Pela primeira vez o dia 20 de novembro foi considerado feriado em todo o território nacional. A data recém-instituída por legislação federal marca as lutas pela resistência do povo negro e cada vez mais tem sido uma oportunidade de discutir a participação dos negros na cultura brasileira e enfatizar a luta antirracista. Alinhada à discussão dessa temática, está em cartaz até o dia 12 de dezembro a exposição “MEMÓRIA & PRESENÇA NEGRA NA ARTE DE JUIZ DE FORA”. Dividida em dois módulos, a Mostra aborda os legados de artistas afrodescendentes, subalternizados pelos processos tradicionalmente hegemônicos de construção da história, no último século, e também a produção de artistas negros contemporâneos ou que discutem, de algum modo, essa presença das referências africanas na arte local.
A exposição propõe a reflexão sobre o processo de invisibilização de alguns artistas negros que deram importantes contribuições à arte juizforana, ao resgatar a trajetória de figuras como Xisto Valle de Assis. O historiador André Colombo, que pesquisa a vida e obra do artista, ressalta que Xisto foi o pintor oficial de Juiz de Fora entre 1895 e 1915. Nesse período, o artista – filho de escravizados – foi o mais atuante na cidade. Mas a história da arte local ainda não o percebeu como o principal nome, entre a morte de Hipólito Caron e a chegada de Angelo Bigi à Juiz de Fora. A equipe proponente da ação acredita que para superar a “invisibilidade” de artistas negros para e pela arte, ocultados pelo racismo estrutural de nossa sociedade, os empreendimentos artísticos devem se comprometer com essas questões. Mais que prestar reverência aos artistas negros se juntam às lutas políticas por reparações históricas e sociais.
XISTO VALLE DE ASSIS
O primeiro artista de origem negra a fazer carreira nas artes plásticas em Juiz de Fora foi Xisto Valle de Assis. Filho de pais escravizados, nasceu durante a vigência da chamada “Lei do Ventre Livre”. Iniciou-se nas artes como tipógrafo e foi nos ambientes das redações dos jornais que teve o seu talento como desenhista identificado, ainda no final do século XIX, fazendo charges e caricaturas. Nascido em Rio Novo, chegou à Juiz de Fora por volta de 1895. Mesmo com a justa reputação que tinha junto ao universo jornalístico, enfrentou muito preconceito, o que ficou registrado pelas próprias páginas dos jornais. Fez dezenas de exposições de arte e suas obras estão, hoje, dispersas em coleções particulares e museus como o Museu Mariano Procópio (Juiz de Fora) e Museu Casa Arthur Bernardes (Viçosa), entre outros. Xisto Valle ensinou a pintura para Américo Rodrigues, tendo atuado junto com ele em grandes decorações arquitetônicas. Xisto foi também músico, fotógrafo e cineasta. Aqui viveu até 1927, quando se mudou para Ubá, onde faleceu no ano seguinte.
AS IMAGENS DO NEGRO NA ARTE
A exposição aponta para a contribuição de outros nomes, como Luiz Pereira, Marcos de Paula, José Mateus, José Natividade, Lage das Neves, entre outros, assim como se propõe a discutir a representação do negro na arte local. Integram o módulo histórico da Mostra algumas representações pictóricas de figuras negras elaboradas por artistas da Sociedade de Belas Artes Antônio Parreiras. Dos anos iniciais de atuação da entidade na cidade data a obra “No Samba”, de Angelo Bigi. Ressalta-se que, na década de 1940, graças às estratégias de Getúlio Vargas, certas vertentes do samba passaram por um processo de incentivo e valorização, levando esse tema também para as telas dos artistas nacionais. Seguindo essa tendência, em Juiz de Fora o músico João Cardoso, que se dedicava com afinco à difusão do samba, teria sido retratado nessa obra datada de 1941 por Bigi. O historiador André Colombo, que assina a pesquisa histórica da mostra, destaca que tanto o pintor ítalo-brasileiro como Edson Motta, que também atuava em Juiz de Fora na década de 1940, produziram outras pinturas representando sambistas negros em Juiz de Fora. Embora não haja a confirmação de que o retratado por Bigi seja João Cardoso, o músico, que também foi artista plástico e teve aulas no Núcleo Antônio Parreiras, onde aprimorava as suas habilidades com as artes plásticas e as exercia junto às escolas de samba como a Turunas do Riachuelo e a Unidos do Mariano, é um dos homenageados da mostra.
OPERÁRIOS NEGROS E ARTISTAS
O Núcleo Antônio Parreiras (NAP), que mais tarde daria origem à Sociedade de Belas Artes Antônio Parreiras (SBAAP), foi fundado sob a liderança de Carlos Gonçalves e Américo Rodrigues. Esse núcleo foi formado por alguns artistas com formação acadêmica e também por muitos pintores de parede, ou de pintura lisa, que também atuavam em empreitadas artísticas, fazendo obras de pinturas parietais artísticas, integradas às construções ecléticas em voga na cidade na primeira metade do século XX. Entre esses artistas, esteve Luiz Pereira, que teria praticado a pintura de cavalete, segundo alguns registros históricos. Mais tarde, Luiz Pereira foi um dos fundadores da SBAAP, atuando durante muito tempo em trabalhos administrativos. Em outra obra que integra a mostra, Luiz Pereira é retratado por Carlos Gonçalves. Registra-se que Luiz Pereira posou como modelo para outros pintores. No acervo do MAMM-UFJF, encontra-se outro retrato de Luiz Pereira aparentemente pintado no mesmo dia por Angelo Bigi.
Apesar da inspiração acadêmica das instituições artísticas como o NAP e a SBAAP, elas congregavam artistas de diversas classes sociais e origem étnica.
Desde a fundação do Núcleo até a sua reestruturação como Sociedade Artística, esse movimento sempre teve a participação ativa de figuras negras que não ganhavam, no entanto, o mesmo destaque de seus confrades. Entre os pintores negros que atuaram na Sociedade de Belas Artes Antônio Parreiras, destacaram-se: João Cardoso, Marcos de Paula, José Mateus, José Natividade e José Julio Lage das Neves. Esses artistas produziram pintura de cavalete, participavam de exposições coletivas e de salões de arte na cidade e em outros centros. Alguns desses nomes estão representados nos acervos artísticos da cidade. O estudo da vida e obra desses artistas ainda é incipiente, mas aos poucos ajuda a construir uma revisão crítica da participação do negro na cultura de Juiz de Fora, elemento importante na luta antirracista.
LEGADOS DE RESISTÊNCIA
José Julio Lage das Neves é mais um dos artistas homenageados. Lage das Neves foi uma das figuras emblemáticas da história (não contada) da arte local. Descendente assumido de indígenas e negros, pintor, desenhista e afeito à poesia, teve formação militar e construiu carreira como investigador da Polícia Civil. Em Juiz de Fora, sua presença em movimentos artísticos é documentada a partir dos anos de 1940, com breves comentários na imprensa sobre pequenas exposições individuais e comercialização de obras.
Segundo seus contemporâneos, o artista tinha rara sensibilidade artística e cultural. O artista integrou a histórica exposição coletiva realizada durante as comemorações do Centenário de Juiz de Fora, em 1950, da qual surgiu o Salão Municipal, realizado a partir de então pela SBAAP. Como ressalta Lucas Amaral, “sua pintura e seus desenhos abordam, principalmente, aspectos de Juiz de Fora e região, sendo de particular interesse documental a série de desenhos na qual registrou a antiga arquitetura de nossa cidade, que foi sendo demolida com o desenvolvimento urbano” (AMARAL, 2004, p.91).
Seus desenhos, ressaltam André Colombo, são uma crônica visual da destruição do patrimônio cultural de Juiz de Fora no século XX e um documento de grande importância para a compreensão do processo de transformação urbana de Juiz de Fora. Sua pintura, também a espera de estudos, possui uma identidade própria caracterizando-se por paisagens rurais bucólicas com casas e casebres em tons terrosos, árvores velhas e retorcidas e figuras femininas, normalmente negras e esguias. Com uma carreira longa, diversa e marcada pelas contradições de seu tempo, Lage das Neves expressou, de forma muito peculiar, sua resistência. Foi um homem dividido entre a sua função pública, de repressão, e sua prática política de proteção aos reprimidos. Os relatos sobre sua vida dão conta das suas experiências com a mediunidade, afeição e vivência de religiões de matriz africana, assim como sua tentativa de proteção desses espaços, diante de atribuições a ele impostas pelo regime militar ditatorial.
Lage das Neves incorpora, através dessas ambiguidades, sua exemplaridade enquanto sujeito histórico, dicotomias inerentes à vida de um artista-militar ou de um militar-artista.
PRESENÇA NEGRA NA ARTE DE HOJE
A mostra também reúne artistas contemporâneos que defendem a valorização da cultura negra, especialmente no campo das artes visuais da cidade. Os artistas convidados para esse módulo foram Carlos Sacchi, Fábio Domingues, Josemar Lagrotta, Marcelo Campos, Márcia Lamas, Mariana de Andrade, Ramon Brandão, Rodrigo Dias, Stain, Vinícius Chagas, Wesley Rocher Monteiro e Yure Mendes. O artista plástico Wesley Rocher Monteiro, produtor cultural do segundo módulo da exposição, destaca que a seleção se deu tendo como critério primeiro a inserção dos artistas negros e em segundo lugar a inclusão de obras de artistas que através de suas criações, expressam a força, a beleza e a resiliência da cultura afro-brasileira. Segundo ele, “pensamos em uma homenagem mais que justa às contribuições significativas dos afrodescendentes para a arte e a cultura, e um convite à reflexão sobre importantes temas, como, por exemplo, a promoção e valorização dos artistas negros na construção da identidade cultural da cidade, assim como a abertura de diálogos para a conscientização sobre o racismo e a importância da igualdade racial, através da arte”.
SERVIÇO:
EXPOSIÇÃO: MEMÓRIA & PRESENÇA NEGRA NA ARTE DE JUIZ DE FORA
Curadoria: Helena Monteiro – Contato: (32) 9.9949-1324
Produção: Wesley Rocher Monteiro – Contato (24) 9.8127-7522
Pesquisa histórica: André Colombo – Contato: (32) 9.9161-7424
Local: Ateliê das Molduras (Av. Itamar Franco, 684 – Centro – Juiz de Fora – MG). Em cartaz de 22 de novembro a 12 de dezembro de 2024.
*Helena Monteiro atua no ramo de molduraria e como auxiliar de galeria há 20 anos em Juiz de Fora. Atualmente, é empreendedora das artes plásticas, sócia e gerente do Ateliê das Molduras.