Pela leitura desses registros, observa-se que, às vezes, as expressões Defesa, Defesa Nacional e Nacional de Defesa são usadas indiscriminadamente, o que é uma impropriedade
Na concepção e formulação da doutrina de Defesa do Estado brasileiro, há três documentos basilares: Política Nacional de Defesa, Estratégia Nacional de Defesa e Livro Branco de Defesa Nacional. Quadrienalmente, esse substancial acervo passa por uma revisão: a realizada em setembro/16 foi encaminhada ao Congresso Nacional, em outubro/16, pelo Ministério da Defesa (MD), para análise, visando à transparência, à participação e ao debate da sociedade; em 2020, outra revisão. Ficaram na intenção, porque ambas não tiveram grande repercussão. Agora, em 2024, haverá nova revisão e a sociedade está sendo convocada, sem muito entusiasmo, a participar.
Contudo, em razão desse propósito, apresentam-se algumas observações.
A primeira é que a Política Nacional de Defesa (PND) originalmente foi aprovada pelo Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005, como Política de Defesa Nacional (PDN). Em 2012 o documento foi atualizado, passando a ter o nome atual (PND). A Estratégia Nacional de Defesa (END), com origem no Decreto nº 6.703, de 2008, é mais uma Estratégia de Defesa Nacional (EDN) que uma END: “… e revista em 2012, traçou metas para assegurar que os objetivos da Defesa Nacional pudessem ser atingidos”. O título do Livro Branco de Defesa Nacional guarda coerência com seu conteúdo, visto que aborda, apenas e tão somente, a Defesa Nacional. Assim sendo, conviria elaboração do Livro Branco de Defesa Social.
Pela leitura desses registros, observa-se que, às vezes, as expressões Defesa, Defesa Nacional e Nacional de Defesa são usadas indiscriminadamente – o que é uma impropriedade, visto que cada uma se refere a conteúdo específico – turbando o entendimento, às vezes, até mesmo de quem é do ramo.
Para evitar esse e outros equívocos, melhor seria se o tema fosse desenvolvido de forma mais didática. De início, seria absolutamente conveniente uma revisão doutrinária e conceitual, ensejando, assim, uma nítida, uma cristalina abordagem sobre o que é Segurança e seus desdobramentos, visto que, por ora, o termo é utilizado – equivocadamente, quero crer – guardando sinonímia com Proteção e Defesa. Esta, também, receberia tratamento idêntico, estabelecendo o que é, por que e para que existe.
Por exemplo, no Livro Branco encontramos: “Uma das atribuições do Estado é prover a segurança e a defesa necessárias para que a sociedade possa alcançar os seus objetivos”. Escrevo, como provocação, não seria: “o Estado existe para prover a proteção e para promover o progresso, visando a instalação do ambiente de segurança. O provimento da proteção é realizado através de instrumentos – as instituições – e de mecanismos – as defesas (nacional e social). Já a promoção do progresso é realizada pelos mesmos instrumentos e por mecanismos próprios, as ações de desenvolvimento (nacional e social)”.
Da mesma forma, conviriam explicações sobre o Estado e seus três ortodoxos elementos constitutivos (povo, território e governo), em breve exposição sobre sua origem e seus fins, com ênfase no provimento da proteção, através de ações de defesa, e na promoção do progresso, através de ações de desenvolvimento. Na sequência, seriam desenvolvidos os princípios doutrinários nos específicos campos: político, econômico, psicossocial, militar e tecnológico.
Obviamente, as ações de defesa seriam abordadas em documentos elaborados pelo Ministério da Defesa e as ações de desenvolvimento pelo Ministério do Desenvolvimento. Nada impede, porém, que esses trabalhos sejam realizados em parceria interdisciplinar ou por outros ministérios, ficando a condensação e a divulgação com o ministério-origem.
Dessa forma, sob responsabilidade do MD, teríamos a Política de Defesa, a Estratégia de Defesa e o Livro Branco de Defesa, cada título abordando os elementos constitutivos e, respectivamente, as ações peculiares aos cinco campos acima listados.
A leitura dos títulos (PND, END, Livro Branco), em vigor, mostra intenso e extenso conteúdo voltado para a Defesa Nacional, com ênfase em ações do campo militar. Nada contra a ênfase! Tudo contra a preterição da Defesa do Corpo Social e dos outros campos (político, econômico, social e tecnológico). Sem dúvida, esses manuscritos são de ótimo conteúdo, porém, estão incompletos (pelas razões descritas) e dúbios (quando são usadas indistintamente as locuções Defesa Nacional e Nacional de Defesa). Portanto, fala-se muito de Defesa Nacional, porém nada se fala de Defesa Social – Conjunto de atividades de restrição de vulnerabilidades e de mitigação de ameaças à sociedade, visando à tranquilidade social – duas espécies de um mesmo gênero, a Defesa. Em alguns Estados já há, inclusive, Secretaria de Defesa Social.
Assim, visando a evitar erro na utilização generalizada de terminologia, talvez fosse interessante cortar a palavra Nacional nos títulos Política Nacional de Defesa, Estratégia Nacional de Defesa e Livro Branco de Defesa Nacional, acrescentando a eles a expressão “do Estado Brasileiro”.
Voltando aos elementos constitutivos do Estado, a abordagem sobre “território” está muito bem desenvolvida em manuais da Escola Superior de Guerra, em que pese abordar, apenas, a participação das FFAA, isto é, não contemplam as Forças Públicas Estaduais (FPE), organizações militares estaduais, que têm o cognome de Polícias Militares, garantidoras da Ordem em seus Estados e no Distrito Federal. Impropriamente, elas são mais conhecidas pelo que fazem (Polícia Ostensiva) do que pelo que são (Força Pública Estadual).
Aliás, sobre estas Instituições, há uma grotesca impropriedade em nossa Constituição Federal, no Art. 144, § 6º, estabelecendo que as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares são forças auxiliares e reserva do Exército. Isso, em matéria de Defesa, é uma impropriedade, visto que aquelas não têm qualificação, treinamento e equipamento para serem reservas, além de a atividade de força auxiliar não estar definida, conceituada. Nosso entendimento é de que o “auxílio” antevê uma certa reciprocidade em ações relativas à ordem social (desastres específicos, calamidades em geral, eleições, etc.) e à ordem nacional (GLO, grave perturbação da ordem nacional, estado de defesa).
Essas instituições estaduais não são citadas em qualquer dos três aludidos documentos produzidos pelo MD (somente na publicação “Garantia da Lei e da Ordem – MD33 – M -10 – 1ª Edição/2013” há rápida referência a órgãos de segurança pública, como são chamados os efetivos órgãos de Salvaguarda Social, fração da Defesa Social).
O compromisso de ambas as Forças (federal e estadual) é com a Ordem. A missão da força pública estadual (FPE), que realiza trabalhos de força policial, precedendo, em planejamento e operações, o emprego das forças públicas federais (FPF), é garantir a Ordem e os poderes construídos, em seus respectivos limites territoriais. Atuam de iniciativa, protagonistas em situação que varia da normalidade, passando pela alteração, pela perturbação, pela grave perturbação, chegando à muito grave perturbação da ordem social (faixa cinzenta, de transpasse do protagonismo da FPE para a FPF) que antecede a grave perturbação da ordem nacional, quando, então, haveria intervenção da União, através GLO e ações de Defesa do Estado (Estado de Defesa e Estado de Sítio).
Aceitos para discussão esses dois temas (Defesa Social e Forças Estaduais), certamente surgiriam vários outros, como, por exemplo, a adoção da providência de transferir, do Ministério da Justiça para o Ministério da Defesa, as competências de que fala o Decreto nº 11.348, de 1º de janeiro de 2023 porque, de fato, trata de assuntos e órgãos vinculados à Defesa Social (ação, que é confundida com Segurança, ambiente).
E, conforme já nos manifestamos, o Ministério da Justiça enxerga a Defesa Social (erroneamente tratada como “segurança pública” – expressão utilizada restritivamente, hoje em dia, para referência apenas à criminalidade violenta)) somente sob a óptica do Direito, embora seja matéria que exija intervenção multidisciplinar nas causas, na causalidade e nos efeitos.
Na sequência, seria extremamente importante examinar, com urgência, a oportunidade (conveniência e necessidade) de certos departamentos, do MJSP, que acompanham, orientam, auxiliam atividades das Forças Públicas Estaduais e da Força Nacional, fazerem parte da estrutura do MD, vista a interligação da defesa nacional com a defesa social, que guardam mais compatibilidade que Justiça e Segurança Pública (Defesa Social).
Pressupõe-se que advirão vantagens não apenas na sincronia de ações no campo operacional, mas, também, no campo das informações e no campo da logística. Aliás, neste último, as aquisições de material (armamento, equipamento tecnológico em geral, de comunicações, de saúde, de transporte, etc.) certamente terão mais efetividade.
Observa-se que a falta de definição clara e objetiva de políticas públicas e estratégia para a defesa social tem sido uma das causas de elevação da espiral da sensação de insegurança em razão de, principalmente, o incremento da violência da criminalidade e a escalada do crime organizado, com ênfase para o tráfico. Abordada de forma superficial na PND (2.2.12 e 3.6.3.) constata-se que a assustadora vulnerabilidade de nossas fronteiras é decorrência de diacronia e de dissintonia entre esforços da União e de Estados-membros.
A transferência da responsabilidade de coordenar a redução da insegurança (e não na utopia de aumentar a segurança) para o Ministério da Defesa, pode representar sintonia, sinergia e atuação efetivamente sistêmica, com melhores resultados que os alcançados até aqui
Enfim, estas sintéticas observações, em voo de pássaro, pretendem constituir-se em contribuição ao debate, visando à revisão da ampla e integral Doutrina de Defesa.
* Coronel Reformado da PMMG, foi Comandante da Região Metropolitana de BH