
Jogar, pra quem gosta, é um prazer repleto de adrenalina. CRÉDITOS: Divulgação
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20-03-2025 às 18h00
José Luiz Borges Horta*
É curioso como o mundo, à medida em que avançava a revolução das telecomunicações,
anterior ainda à revolução digital, foi se tornando menor, mais próximo, mais fácil de ser
alcançado por uma palavra, um olhar, um toque e agora um salto: o que antes era
transfronteiriço e agora é somente o giro de pessoas e de bens pelas múltiplas civilizações
coexistentes no planeta.
Só assim é possível pensar realidades tão díspares quanto a do Brasil, de que já falaremos
(se é que precisamos), e as da França e da Espanha, os dois maiores destinos turísticos do
mundo. Temos contemplado, aqui e ali no Velho Mundo, verdadeiras barricadas tentando
impedir o turismo, ao menos segundo interpreta a mídia. Não é bem o turismo que os
povos europeus querem reprimir; os europeus sabem perfeitamente bem da importância da
indústria do turismo para o desenvolvimento social e econômico de suas nações.
O turismo que incomoda os europeus é o turismo de canibalização, econômica e cultural,
decorrente de uma espécie de “pirataria” turística: ao invés de voar em uma aeronave
segura com sua bagagem, um avião frágil em que você leva apenas uma mochila; ao invés
de um hotel controlado pelos setores competentes do Estado, uma unidade escolhida em
um aplicativo de internet sem que se tenha grande segurança em relação à tradição do que
não é um estabelecimento; ao invés da comida da gastronomia caseira local, aquela que nos
faria sentir os gostos e sabores daquele povo, a insípida padronização do “fastfood”
internacional com que só nos alimentamos em dias de franca decadência de tempo pessoal;
nas piores viagens, naquelas mais difíceis, ao invés de pensões simples porém tradicionais,
quartos improvisados em apartamentos apertados e sem a menor condição de acolher
adequadamente ao turista.
Não é o turista que degrada: ele é degradado, assim como a cidade e o espaço turístico que
ele buscava conhecer. Todos devem ter acesso ao turismo, mas isto não é justificativa para
turismo insalubre, de baixa qualidade e que torne regiões inteiras de uma cidade turística
em um parque padronizado de diversões onde toda e qualquer atividade, como a de se
alimentar, será feita nos mesmíssimos padrões daquelas “marcas de comida”
industrializada.
O debate do turismo no Brasil, no entanto, é aberto o suficiente para ser ousado. Inúmeras
iniciativas, distintas em objeto, em estratégias e em resultados foram já utilizadas e não
dispensam outras, que possam representar verdadeira inovação e, como a que proporemos,
forte intercessão com a cultura e com a educação — implicando, o turismo, em estratégia
de desenvolvimento socioeconômico.
Em boa hora, a Câmara dos Deputados vem buscando formas de incrementar o orçamento
brasileiro mediante a disciplina legal dos chamados “jogos”. Peço licença para não tratar do
conjunto do tema, não cuidando nem de loterias, nem de bingos, e nem mesmo do mais
clássico de todos os jogos brasileiros, o “jogo do bicho”, hábito contumaz do povo
brasileiro que o mundo jurídico, de modo arrogante e preconceituoso, considera impróprio.
Já o povo, cuja sabedoria é infinitamente superior à de qualquer um de nós, mantém suas
tradições muito bem guardadas e sempre que sonha com algum animal, tomado de
entusiasmo, vai logo fazer uma “fezinha no milhar”. Mas segue havendo quem não respeite
a fé do povo em seus próprios sonhos.
Cassinos, no entanto, são grandes aparatos urbanos, preparados usualmente por grupos
econômicos robustos para um turismo particularmente perdulário, pródigo e disposto a
gastos substanciais. O volume de recursos econômicos e humanos movimentado no
entorno de um cassino é tamanho que, se bem observados, cassinos são sempre um grande
parque de cassinos.
Por isso o complexo de parque de cassinos não contém somente inúmeras salas para
distintos tipos de jogos, como também teatros e salas de exibição cultural, além da imensa
estrutura de hotelaria, de restaurantes e de bares. Daí que, em pleno Deserto do Mojave, no
sul do estado norte-americano de Nevada, o simples fato de haver uma cidade onde os
cassinos são inteiramente autorizados tornou Las Vegas em um dos maiores centros
turístico-culturais dos Estados Unidos da América.
Pensemos nessa ideia por um momento: um deserto, a impossibilidade de
desenvolvimento, o sofrimento do povo, o calor do sertão, a dor da fome. E se o Brasil
construísse uma via turística estratégica? E se o baixo IDH (índice de desenvolvimento
humano) de uma cidade (ou de uma microrregião) fossem o critério inicial, “conditio sine
qua non”, para autorização de um parque (ou complexo turístico-cultural) de cassinos? O
que poderíamos construir se, com habilidade, desenhássemos um plano estratégico de
implantação de parques de cassinos?
Para que seja verdadeiramente estratégico, além do padrão de baixo desenvolvimento
humano na região do parque de cassinos, é preciso pensar no complexo a ser autorizado
como um centro que reúna, ao mesmo tempo, fatores de natureza turística, cultural e
educacional. Todo cassino precisa de hotel, todo hotel precisa de restaurante, todo cassino
precisa de teatro, todo teatro precisa de atores, músicos, autores.
Portanto, um parque de cassinos precisa conter no seu projeto de implantação, no mínimo,
uma escola ou centro de formação técnica, tecnológica e educação continuada nas áreas
referentes ao universo da indústria de turismo, hotelaria, gastronomia, sommelliers,
conciergerie, baristas, e mesmo funções de assistência ou auxílio administrativo ou geral,
desde informática até jardinagem, de etiqueta a idiomas.
Por outro lado, teatros e casas de shows precisam ser elementos de desenvolvimento
sociocultural e reclamam, no âmbito do projeto de autorização de um parque de cassinos, a
manutenção também de escolas de cultura com bibliotecas (analógicas), cursos de música,
teatro, cenografia, moda, e mesmo escolas de redação e escritura. Além disso, é preciso
garantir ao povo que viva em um raio de cinco quilômetros do parque de cassinos pleno
acesso ao universo digital, mediante rede gratuita disponibilizada pelo próprio complexo.
Ousemos então pensar que isso foi feito em quaisquer das regiões dos muitos Sertões do
Brasil: onde hoje tudo é secura, amanhã tudo pode ser espetáculo, já que Sertão é quando
menos se espera, como quis Guimarães Rosa — e é onde tudo se espera, acrescento.
Um complexo de cassinos, com milhares de empregos gerados desde os mais simples, na
sua própria construção civil, até os mais complexos, na sua direção operacional, com hotéis,
restaurantes de culinária regional, restaurante de culinária nacional, restaurante de culinária
internacional, centros de formação profissional técnica, tecnológica e continuada, centros
de cultura…
Não precisamos pensar apenas em termos financeiros no aporte que a disciplina do jogo
no Brasil inevitavelmente trará ao Estado na eterna batalha para fazer do nosso país a pátria
amada com que seguimos tantos sonhando; podemos expandir os nossos horizontes
reflexivos para além da arrecadação tributária. Podemos gerar desenvolvimento humano,
sustentável, mediante a formulação de um sistema de parques de cassinos que criativamente
entrelace educação, cultura e turismo, impactando nos cofres públicos diretamente, mas
indiretamente no desenvolvimento social, no desenvolvimento econômico, no
desenvolvimento laboral, no desenvolvimento cultural.
De quebra, não haverá turista de cassino que não resolva conhecer algumas das demais
jóias turísticas brasileiras, cujos aeroportos internacionais já estão inclusive construídos, o
que deve também incentivar o turismo em regiões não autorizadas para parques de
cassinos: o Brasil é, e tem de ser, uma experiência inesquecível.
Como belo-horizontino, só me dá uma tristeza de saber que a antiga região do hipódromo
de Serra Verde talvez não possa ser cogitada para se transformar em um complexo de
cassinos (no contexto de um redimensionamento da administração pública mineira ainda
maior e mais profundo que o que a concentrou naquela “cidade administrativa”). O
desenho das cinco edificações principais é bastante apropriado, ao menos para hotéis e
restaurantes (nos edifícios Minas e Gerais), salas de jogos (no edifício Tiradentes),
administração (no edifício Alterosas) e um grande teatro (o Juscelino Kubitschek) que já
está lá. O problema mais grave, nesta hipotética requalificação urbanística, seria a
instalação de banheiros nos edifícios Minas e Gerais — mas a Arquitetura, especialmente
hoteleira, é capaz de consertar até mesmo truncados castelos medievais.
Jogar, pra quem gosta, é um prazer repleto de adrenalina. Colocar o jogo a serviço do
Estado e do povo, criando modelos nos quais o direito ao desenvolvimento, nos seus
múltiplos aspectos, seja prioridade até mesmo sobre os óbvios superávits de arrecadação —
aí é dever dos políticos e dos homens e mulheres de Estado que apostam no futuro de seu
povo.
*José Luiz Borges Horta, 53, é Professor Titular de Teoria do Estado na Universidade
Federal de Minas Gerais e professor visitante sênior PrInt-CAPES na Facultat de Filosofia
da Universitat de Barcelona. Pesquisador no Centro de Excelência Jean Monnet em
Estudos Europeus da UFMG. Contato: zeluiz@ufmg.br