Em determinado momento, extasiado pelo belo, pus-me a chorar copiosamente com a mais profunda e sincera emoção de quem está mergulhado de corpo e alma em um mundo fantástico.
28-01-2025 às 09h48
Sérgio Augusto Vicente*
Sou muito de sonhar e guardar os sonhos vivos em minha mente, sobretudo aqueles que me tocam profundamente. Alguns deles se parecem com roteiros cinematográficos com início, meio e fim. Na noite passada, do meu aniversário, tive um sonho especial. Não foi um sonho qualquer, mas uma espécie de epifania. Sonhava que entrava em uma espécie de chácara, em que tudo era rústico e, de repente, descortinou-se em minha frente um universo fantástico, em que pelotas de argilas ganhavam forma nas mãos de artistas. Tudo ganhava formas incríveis, lúdicas, surpreendentes e com a mesma naturalidade do ar que respiramos. Em determinado momento, extasiado pelo belo, pus-me a chorar copiosamente com a mais profunda e sincera emoção de quem está mergulhado de corpo e alma em um mundo fantástico.
Mas um detalhe dessa narrativa me chamou atenção: enquanto os amigos e familiares que me acompanhavam escolhiam algumas peças pra levar para casa, eu tinha enorme dificuldade de fazer escolhas. Maravilhado com tudo, preferia não escolher nada. Ao final do sonho, encomendei aos artistas pequenas esculturas de escritores e poetas da nossa literatura. E voltei para casa cheio de expectativas…
Depois de acordado, pus-me a pensar em minha genuína relação com o barro na infância, quando brincava de pegar terra de barranco para confeccionar pequenos vasos de plantas, bonecos, etc. Lembrei-me também de uma situação que, no dia anterior, me havia sido relatada por uma pessoa muito próxima, cujo filho – ainda com seus quase três anos de idade -, sacou de dentro da fralda uma pastosa pelota marrom, amassou-a em suas mãos e a esfregou na tela da TV, como um artista em seu surto criativo. A mãe da criança, assustada com o que aquele “serumaninho” foi capaz de fazer nos poucos minutos em que o deixou sozinho, alternou os olhares entre o sorriso de felicidade do jovem Van Gogh e a ingrata limpeza a ser feita na sala. Nessas horas, a mãe não sabe se chora ou se ri.
Nessa fase de desenvolvimento, a criança não apenas é egocêntrica – tudo é “meu” – como também se encanta com a descoberta da mais genial e primitiva obra humana: seu bolo fecal. É o adulto, prático e ranzinza, que chega logo impondo o mal-estar da civilização. Fazer o quê?! A vida é feita de frustrações desde quando nascemos. Será por que nascemos chorando, e não rindo?!
Talvez por isso eu tenha sonhado com barro e arte naquela noite de aniversário. Não era cocô. Era barro. Mas que diferença faz? Ambos são matérias-primas ganhando forma em criativas mãos humanas. Entre o menino de 2-3 anos e o adulto de 39, existe a vontade de obrar no sentido mais baixo-corporal do termo, de ter a liberdade de ser um pedaço de natureza que transforma a natureza sem deixar de se perceber como parte dela… Essa vontade aumenta sempre que me questiono sobre a magnitude das barbáries que a humanidade foi e é capaz de fazer em nome da famigerada civilização, que transformou a “bosta” em “fezes” canalizadas para os rios e mares, contaminando-os com “coliformes fecais”. Por essas e outras, esfregar “bosta” numa tela de TV me parece mais razoável do que muitas atitudes vistas por aí…
*Professor de História e Historiador. Doutor, Mestre, Bacharel e Licenciado em História pela UFJF. Colunista do jornal “Diário de Minas” e colaborador de outros periódicos. Membro correspondente da Academia de Letras, Artes e Ciências Brasil (Mariana-MG). Trabalha na Fundação Museu Mariano Procópio (Juiz de Fora-MG).