
Penitenciária Nelson Hungria em Minas Gerais, lugar de horrores no período ditatorial brasileiro - créditos: Divulgação
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30-03-2025 às 10h10
Por Augusto Soares (*) A execução
A sua cela era em frente à minha. Logo após o 21 de setembro, em que sob o pretexto de motim, o Exército colocou todos os presos políticos trancados em suas celas, comecei a conhecer mais o Salatiel.
Ele cantava, todas as noites, músicas de Martinho da Vila após os coros de hinos políticos internacionais e as músicas compostas por Jacaré, Nilo Sérgio.
Não me lembro do nome da música e já esqueci de quase todos os versos. A mais cantada falava de liberdade, de uma liberdade que se ensinava a uma criança. Salatiel sabia muitas músicas do morro, muitos sambas, ele fora repórter e fazia a cobertura das escolas de samba.
Sala, Salatiel, recebia muitas cartas da filha, que era protestante, e dos parentes. Lia aquelas cartas para toda a galeria. Sua vida política até o momento em que chegara na cadeia estava envolta em indagações. Um tribunal revolucionário o julgara dentro da prisão. Ninguém sabia da sentença.
Diziam que a história da morte de um líder do PCBR poderia estar complicando a vida de Salatiel que o teria entregado para a polícia. Tempos mais tarde, eu li no Jornal do Brasil a perseguição e morte de elementos do PCBR pela polícia. Estes “elementos” teriam sido os autores da morte de Salatiel no Rio.
Durante os debates políticos das greves sucessivas que fazíamos dentro da cadeia, em resistência aos atos de repressão da ditadura, Salatiel assumia uma posição lúcida, tendo enfrentado com objetivos bastante definidos todos os golpes assestados contra nós pelo Exército, responsável pela guarda e disciplina da penitenciária de Linhares, em Juiz de Fora.
Salatiel fora um dos batalhadores mais antigos do Partidão, filiou depois ao PCBR como opção para a luta armada contra a ditadura e era responsável por parte do sistema financeiro. Segundo eu ouvira, dentro da prisão, ele teria recebido dinheiro para comprar e instalar uma rede de aparelhos em apartamentos, no Estado do Rio, e desviara o dinheiro na compra de uma frota de táxis, que colocara em nome de sua filha.
“Cara, tinha que aplicar senão a inflação comia tudo”.
O PCBR dera um prazo para a devolução do dinheiro. Outra história dizia que Salatiel, como revolucionário profissional, recebia dois mil cruzeiros por mês, e que o seu salário estava atrasado mais de dez meses. A quantia em seu poder ultrapassava quatrocentos mil cruzeiros. Salatiel resolveu tirar deste dinheiro, sem autorização, aquela quantia que lhe correspondia.
Outra versão, confirma a primeira, Salatiel teria aplicado o dinheiro incorretamente. Várias vezes, Sala pedira ao juiz Mauro Seixas Teles para ser transferido de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro, onde acreditava poder fazer sua defesa, em qualquer tribunal.
Zé Adão não gostava de Sala, todas as vezes que me passava a Tereza com alguma coisa escrita fazia uma cara de reprovação. Zé Adão, não, Zé Alfredo. Zé Alfredo pertencia ao grupo político de Gilney Amorim Viana, Arnaldinho, Play, Tonhão, Délio e outros de uma tendência majoritária de combate à ditadura em todos os movimentos. Eram os velhos representantes do coletivo – uma proposta de sobrevivência e solidariedade – que o Exército decidira destruir. A principal força do coletivo era a solidariedade. A direção da cadeia recebera do Exército instruções para acabar com o coletivo.
Fernando Pimentel foi o escriba mentor do coletivo na galeria D, onde estavam aqueles que não foram transferidos para a galeria C, reservada aos líderes, quaisquer que eles fossem, e aos radicais.
A galeria B, a diretoria do presídio reservou aos que ela não conhecia e que podiam ser identificados como os menos radicais, aqueles que dialogavam com a direção, que aceitavam concessões e que reivindicavam sem agredir e que eram solidários com todos os prisioneiros políticos independente da organização.
Durante muito tempo, depois de setembro, a luta da galeria B se centralizou na destruição do parlatório, pela luz acessa até a meia noite e jogos de futebol de salão intergaleria.
Salatiel era um homem que conseguia penetrar em todas as áreas, todos os grupos políticos o escutavam, embora a maioria não atendesse suas ponderações.
Salatiel Texeira Rolim foi um homem que durante muito tempo dedicara sua vida à luta revolucionaria. Não era
mais um jovem.

Eu muitas vezes penso em quantas decepções não tivera o velho Salatiel, em quantas pessoas revolucionárias de fato ele conhecera, em como não teria sido dura a sua vida, em como o velho partidão no período Goulart não acabara com as suas perspectivas de luta política.
As histórias de quatro militantes de esquerda condenados à morte e executados nos anos de chumbo da ditadura militar por guerrilheiros também esquerdistas em nome da “justiça revolucionária” são reconstruídas em “Injustiçados”, livro do jornalista Lucas Ferraz recém-publicado pela editora Companhia das Letras.
“… um homem que se afastara da guerrilha ao sair da prisão e recomeçara a vida administrando um bar foi morto pelos ex-companheiros por causa de um boato. Salatiel Teixeira Rolim fora responsabilizado pela morte de um dirigente do grupo, o que era falso.”
Pouco lembrados em registros históricos, Márcio Leite de Toledo, Carlos Alberto Maciel Cardoso, Francisco Jacques de Alvarenga e Salatiel Teixeira Rolim foram injustamente considerados traidores. Eles acabaram assassinados entre 1971 e 1973 por membros de dois grupos que enfrentaram o governo militar por meio de ações armadas, a ALN (Ação Libertadora Nacional) e o PCBR (Partido Comunista Revolucionário Brasileiro), uma dissidência do antigo PCB.
(*) Augusto Soares é jornalista
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