
Ressentimentos e Anistia, um caminho necessário para prosseguir - créditos: divulgação
07–09-2025 às10h30
Rogério Reis Devisate (*)
O filósofo Friedrich Nietzsche analisou profundamente os significados, o alcance e os efeitos do ressentimento, no comportamento dos homens. Ligando-o aos valores morais, significou o ressentimento no âmbito da formação individual e na vida social.
O contexto nem sempre produz bons efeitos e levou Michel de Montaigne a fixar a ideia de que “a covardia é mãe da crueldade”. Essa frase talvez explique muito do contexto da humanidade e das atrocidades e lutas que costumamos assistir.
Nietzsche conseguiu construir a ideia do ressentimento como motor pelo qual os aparentemente mais fracos passam a dominar os mais fortes. Na obra Genealogia da Moral nos debruçamos nessas análises tão estimulantes.
Os ressentidos elegem inimigos, agem para destruí-los, eliminá-los. Não os vêem como adversários com quem poderiam dialogar, se entender. Para eles, os inimigos devem ser tratados sem piedade. Para isso, apegam-se a detalhes que seriam insignificantes noutros contextos e constroem narrativas a sustentar os vícios de origem dos seus intentos.
Vimos isso no surgimento do movimento do nacional-socialismo na Alemanha há aproximadamente 100 anos. O Nazismo elegeu um inimigo interno que perseguiu ferozmente; promoveu a supremacia racial e desconstruiu a imagem dos demais, ao exacerbar a própria ideia da raça ariana; perseguiu tanto capitalistas quanto socialistas e comunistas, na sua doutrina de estado alemão unificado, forte e autossuficiente; forjou a ideia de espaço vital, para defender a expansão das suas fronteiras; cooptou ideias e ideologias populares, dando-lhes coloração própria; forjou a ideia de que quem não estava com eles estaria contra; criou simbologias e significados por meio da distorção da tradição histórica e cultural, apropriando-se de uma versão e negando as verdades.
Vimos traços disso em outras culturas e povos, como nos movimentos socialistas e comunistas que tanto doutrinaram e defenderam uma revolução contra os opressores, para mais oprimir e lutar contra diferentes e diferenças, sejam ideológicas ou comportamentais.
Recentemente temos visto movimentos de fortalecimento do Estado nas mãos de Trump que causam arrepios a muitos, por similitudes com ações expansionistas praticadas noutros tempos, sob modos diversos, seja do tempo do Império Britânico ou dos movimentos japoneses, alemães e italianos do Século XX, que levaram e alimentaram a 2ª Guerra Mundial.
Também vemos movimentos envolvendo ressentimentos, sob outros prismas, como envolvendo a intolerância com a possibilidade de sequer se discutir no Congresso Nacional a anistia aos envolvidos no 08/01, como se isso fosse uma cláusula pétrea, como a que proíbe deliberação sobre a pena de morte, no Brasil. Ora, o Congresso Nacional é o representante do povo brasileiro e o legislador nato, exatamente por lhe caber perceber a multiface da sociedade e as suas ansiedades e necessidades.
O historiador francês Albert Mathiez, na sua obra As origens dos cultos revolucionários, referiu-se aos legisladores como os “sacerdotes da felicidade social”. Essa felicidade não se alcança com a espada cortante empunhada, ameaçadora… Esta, só divide e fere. A felicidade é alcançada pela sabedoria, pela clemência, pela união das pessoas em torno da nacionalidade e das virtudes. Urge que a espada de guerra seja trocada pela Espada Flamejante, que se associa à ideia de justiça e superior proteção contra as forças do mal, representativa daquela empunhada pelos Querubins, na guarda e proteção do caminho ao conhecimento (Gênesis, 3:24).
Sob outro argumento, os ressentidos de ontem talvez sejam ainda os de hoje e os de hoje poderão ser os de amanhã. Nessa linha, fundamental para uma análise social, temos que perceber que não há solução para o progresso do país enquanto houver divisões que o impeça de obrar pelo seu desenvolvimento e focar no seu fortalecimento social e econômico.
Se unido já é difícil, diante das adversidades e dos adversários nos demais países, com a divisão do nosso povo fica mais difícil para o país avançar…
A anistia, portanto, não é algo a ser visto com foco no presente. Assim não se fez com a anistia aos presos políticos, em 1979. Assim não se deverá pensar, hoje!
Em maio de 2025, escrevemos artigo intitulado A Anistia ao Amor Pertence. O seu teor e título se mantém atuais e estão em conexão com os pensamentos de Nietzsche e Montaigne acerca do ressentimento. Quem tem ressentimentos não perdoa, quem não perdoa não ama plenamente e quem não o faz não produz diálogo e liberdade para progresso próprio ou do seu entorno. Multiplicado o contexto para o cenário nacional, fica fácil perceber o entrave que o ressentimento traz para melhorias no país.
Tivemos vários momentos com Anistia, no Brasil. Foi o caso da rebelião dos Emboabas (1708-1709), a resistência contra a Companhia do Comércio do Maranhão (1684), a Insurreição Pernambucana – contra a invasão holandesa – de 1654, a Guerra dos Mascates em Pernambuco (1711-1714), a Revolta de Villa Rica (1720), a Inconfidência Mineira (1789 – mesmo ano, aliás, da Revolução Francesa!), a Conjuração Baiana (1798) e a Revolução Pernambucana (1817). No Brasil Colônia, houve o movimento da Confederação do Equador (1824), duramente reprimido pelas tropas do Imperador. Também houve a Cabanagem, a Balaiada, a Sabinada e a Farroupilha, contemporâneos movimentos no Grão-Pará, Maranhão, Bahia e Rio Grande do Sul. Esses sofreram forte repressão pelo Exército Imperial e, mesmo assim, alcançaram a anistia. Aliás, em 1835, a Regência concedeu uma, inerente a fatos havidos até 1834, seguida por outra, mais abrangente, concedida em 1836. Outra se seguiu à Questão Religiosa, em 1842. Com a Proclamação da República, logo surgiram anistias, como a de 1895, concedida a militares. Depois, em 1906, anistiados foram os envolvidos na Revolta da Vacina Obrigatória. A Revolta da Chibata, evento marcante relacionado à hierarquia militar, também gerou uma. Em 1916 surgiu outra, beneficiando os envolvidos nos conflitos de 1915 até a Proclamação da República. Anistias também beneficiaram os envolvidos na Guerra do Contestado.
Então, surge Getúlio Vargas, que para alguns encarnava a imagem do mais temível ditador. Também Vargas concedeu anistia, no quinto dia após a sua posse como Presidente. Depois concedeu outra, em 1934, aos envolvidos na Revolução Constitucionalista de 1932. Novamente Vargas fez mais uma, em 1945, beneficiando presos políticos. Após se suicidar, assumem Café Filho, Carlos Luz, Nereu Ramos e, em seguida, por eleição, Juscelino Kubitschek. Este concede anistia ampla e irrestrita aos envolvidos nas rebeliões militares de Aragarças e Jacareacanga e, em 1961, mais uma, retroagindo a 1934. Após o regime implantado em 1964, foi concedida anistia em 18 de agosto de 1979. Resultou dos comitês pró-Anistia, formados por brasileiros, a partir de 1978. Em 1985 ocorreu abrangente anistia, pela Emenda Constitucional 26 à Constituição de 1969, que foi muito ampliada no contexto da atual Constituição Federal, que dela trata no artigo 8º, do seu Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, retroagindo a 18 de setembro de 1946.
Esses exemplos nacionais demonstram que há, inegavelmente, um espírito apaziguador, superior e até terno, incentivando a união de todos em torno de uma sociedade fraterna, na ambiência da vigente Constituição Federal de 1988, que nasceu como a “Constituição Cidadã”, na célebre expressão de Ulysses Guimarães. Que os ressentimentos não imperem e não atrapalhem o país de todos os brasileiros.
(*) Advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ.