A vida pública implica em um nível nada desprezível de exposição, e há quem diga mesmo que a autoridade de um político se vincula também à sua capacidade de enfrentar e contornar crises, inclusive
“Mentiroso!”, “Caluniador!”, “Safado!”, “Canalha!”, “Malandro!”. Aos berros, dedos em riste apontados ao rosto um do outro, concluindo em uma profusão de gritos de “Cala a boca!”. Esse o enredo, aparentemente nada ensaiado, do programa “Roda Viva” de 1994, quando o então candidato à presidência Orestes Quércia se irritava com o jornalista Rui Xavier, do Estado de São Paulo.
No debate dos candidatos ao primeiro turno da eleição presidencial de 1989, a primeira sob a égide da Constituição de 1988, ante as provocações de Leonel Brizola, que dava a alcunha de “Filhote da Ditadura” a Paulo Maluf, o paulista se irritava e acusava ao pedetista de “Desequilibrado!”.
Ainda sob a sombra da ditadura, em 1982, Jânio Quadros, em debate entre os candidatos ao governo do estado de São Paulo, se irritava com a citação a Carlos Lacerda, feita pelo adversário Franco Montoro, e alterado exigia: “O senhor por obséquio, não me mande calar a boca!”.
A política é um esporte arriscado, figadal, marcado por paixões e ódios mútuos. Que em geral não se chegue às vias de fato, isto é, à agressão física, diz mais sobre o grau de autocontrole que boa parte dos políticos brasileiros é capaz de exercer sobre si do que sobre o estado de coisas do debate público brasileiro. Ainda assim, não raro paga-se mesmo com a própria vida pela decisão de concorrer ou tomar posse em mandatos eletivos. O assassinato de Marielle Franco em 2018 sem dúvidas foi chocante, mas pesquisa feita pelo professor Felipe Borba (Unirio), entre os anos de 1998 e 2016, demonstra que ocorrem uma média de pelo menos 16 assassinatos de políticos a cada período eleitoral pátrio.
A vida pública implica em um nível nada desprezível de exposição, e há quem diga mesmo que a autoridade de um político se vincula também à sua capacidade de enfrentar e contornar crises, inclusive acusações pessoais, verdadeiras ou não. Em democracias sólidas, vemos personalidades políticas acenderem e decaírem em grande velocidade por conta de seus atributos e vidas pessoais, tanto quanto por suas qualidades e defeitos na competência política e administrativa.
O imbricamento entre público e privado, típico desse universo, se deve ao menos parcialmente à própria lógica democrático-representativa. Os eleitores precisam ser conquistados, afinal, ainda que o voto não seja o único instituto a caracterizar uma democracia, é sem dúvida essencial a esta. E podem ser convencidos tanto por belos e arrojados projetos, pessoais ou partidários, por eloquentes e sagazes discursos, quanto por uma admiração ou identificação às características pessoais do candidato. Dirão alguns, por seu carisma.
O tema não é novo, e ressoa à tipologia weberiana da autoridade, que emergiria de uma de três fontes: 1) do carisma pessoal de uma liderança; 2) da tradição que ela evoca; 3) ou da racionalidade (o alemão preferiria “legalidade”) de sua atuação. Evoca, ademais, uma tensão constitutiva da construção ocidental da ideia de democracia, a se equilibrar entre a necessidade de uma certa impessoalidade do poder, que busca evitar os personalismos que facilmente desbordam no autoritarismo, e o apelo dos eleitores por narratividades e performatividades com as quais possam se identificar passionalmente.
À medida em que se ampliou o direito de voto, efetivando o primado democrático da participação universal, escancarou-se a falácia tipicamente ilustrada de um debate público racional e inteligível no plano das ideias: tal só teria sido possível mediante um forte e amplo consenso de base, em outras palavras, só enquanto havia um acordo razoavelmente bem estabelecido sobre os projetos “lícitos” de Estado. No debate real, de projetos de futuro significativamente distintos, os ânimos e humores se exaltam, e a razão precisa conviver com a paixão, por vezes desenfreada, com que são defendidas ou atacadas as utopias de uns e outros grupos políticos. Essa a verdade sobre as ideologias, que o século XX, que viu o direito de voto se ampliar, assustado quis soterrar: a política nem sempre é feita de lisura e bom tom.
O tema traz à tona todo tipo de questões, dentre as quais a que seguramente ainda assombra nossos corações é o que fazermos com as ideias que sabidamente se provaram atrozes. Mas ainda que as tiremos, por suposto que seja, do horizonte imediato, o fato é que o século XX viria a ser palco, no ocidente democrático, do que Guy Debord chamaria de “sociedade do espetáculo”. Uma sociedade marcada precisamente pela democrática pluralidade, dirá o autor: “A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo”. Uma perda necessária, sem dúvidas, mas dolorida.
O fim da guerra fria e a aurora do século XXI, por outro lado, vivenciaria a chamada pax americana, acompanhada de um novo “consenso”, ainda que ditado a fórceps, se preciso. Não é sem motivos que a alcunha de “neoliberalismo” evoca precisamente a unidade perdida da belle époque ocidental, momento em que vigorou o tênue consenso ilustrado de que fazíamos menção. Também é significativo que o professor Philippe de Almeida (UFRJ) caracterize esse momento como o da “razão antiutópica”. Entre os anos de 1990 e as primeiras décadas desse século, políticos subservientes, organizações financeiras internacionais, intelectuais pelegos e tantos outros setores se uniram para efetivar um projeto político democraticamente antidemocrático, ora reduzindo a oferta de perspectivas ideológicas às rigorosamente aceitáveis, ora impedindo (por vias diversas) que perspectivas outras se fizessem realizar (cooptação política, sanções econômicas, bloqueios, ataques militares, trocas de regime, o receituário não parece conhecer limites).
Para muitos essa realidade política de uma consensualidade fabricada (ou forçada) teria se exaurido, no Brasil, a partir das Jornadas de Junho de 2013, quando um povo sem direção foi em massa às ruas clamar por mudança. Mas qual mudança? Qualquer mudança? Alguma mudança! O anticlímax da reeleição de 2014, em que se reeditou, no segundo turno das eleições presidenciais, a oferta do duopólio tucano-petista, movimentou forças eleitorais desconhecidas ou esquecidas. O clamor popular por outra política reverberaria no “apoteótico” processo de impeachment, estarrecendo o país perante a filmagem ao vivo da pequenez do baixo clero parlamentar. Novo governo, nenhuma mudança.
As eleições de 2018 sinalizariam, enfim, a nova realidade da cena política brasileira. Sempre perspicaz, a velha política nacional encontraria o novo mote eleitoral do país. Não se trata de propor mudanças, de apresentar ideias novas, mas de performar uma atitude cuidadosamente anti-sistêmica, manufaturada com zelo. No alvoroço do recente episódio da “cadeirada” de Datena em Marçal, em meio a um debate eleitoral da TV Cultura com os candidatos à prefeitura de São Paulo, pouca gente se atentou para a provocação inicial do episódio, em que Marçal diz: “eles todos têm marqueteiros, e gastam milhões”. Quase se perde, no caos subsequente, essa curiosa afirmação, estruturada com esmero para apresentar um candidato supostamente “antissistema”, que se distinguiria dos demais por ser um outsider. Repete-se o script ensaiado, testado e aprovado desde 2018, coroamento do brilhante adágio do clássico italiano Il Gattopardo: “Algo deve mudar para que tudo continue como está”.
Perante o fracasso ideológico e estético do “combate de cavalheiros” travado reiteradamente no Brasil entre 1994 e 2014 pelo duopólio tucano-petista, o neoliberalismo reinventa sua estética sem abrir mão de uma única nota de seu receituário. A tônica hiper-personalista e o estilo anti-sistêmico revigoram, em verdade, o afã de uma ideologia que não tolera competidores, que não admite projetos alternativos (e que, justamente por isso, é profundamente antidemocrática). Os eleitores brasileiros seguem em busca de algo ou alguém que sejam capazes de reconhecer verdadeiramente como revigorante da política nacional
E a política, esta segue sendo a mesma de sempre, violenta e passional.
* Hugo Rezende Henriques é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).