
Frases atribuídas a quem não as assinou são inúmeras, e com seus falsos donos passam pelo tempo. CRÉDITOS: Divulgação
13-05-2025 às 09h15
Autor, Wilson Cid*
Coisa que não falta nas páginas que os povos escrevem sobre sua interminável aventura de percorrer a História e, ao mesmo tempo, construí-la – pelo contrário, têm aí uma regular frequência – é a equivocada paternidade que se atribui a frases de personalidades famosas, sem embargo de muitas terem contribuído para celebrar quem não as proferiu. Não raro, os verdadeiros autores morreram incógnitos. Somam-se então inumeráveis injustiças, outro defeito que se projetou no tempo.
Na linha das invencionices, pode-se dizer logo que nem as Sagradas Escrituras escaparam. Onde foi que se leu na Bíblia, em que profeta, em que Livro, em que Epístola a sinistra advertência sobre o fim dos tempos?
“De mil passará a dois mil não chegará”.
Foi preciso que o milênio dobrasse sua escalada no calendário, para que tal sentença fantasiosa afinal não se confirmasse. Ora, nem no Antigo nem no Novo Testamento houve quem elaborasse tal previsão; mas as pessoas passaram séculos acreditando nela, alimentada por crendices e falsos profetas.
A História, coitada, sempre abrigou equívocos em relação ao disse me disse, conferindo paternidades e registrando omissões diversas. Frases atribuídas a quem não as assinou são inúmeras, e com seus falsos donos passam pelo tempo, que consagra os erros. Com eles convivemos, muitas vezes por ignorá-los.
Um exemplo que, de imediato ocorre e que guardamos na mente, desde os tempos da carteira escolar, é aquele momento de imensa importância para o Brasil, quando à margem do Ipiranga Dom Pedro proclamou estarmos desligados do jugo português, lançando ao espaço o conhecido “Independência ou Morte”.
Na verdade, quando foi advertido que os portugueses reagiriam violentamente às suas desobediências frente à Coroa, o que realmente Pedro disse foi apenas “Lutaremos”.
Aquele “Independência ou Morte” figurou como uma alegoria destinada a conferir caráter solene ao episódio. Essa preocupação com a paternidade da imagem e seu simbolismo, acima do fato concreto, certamente foi a mesma que levou Tiradentes ao patíbulo com a imensa barba, que ele não tinha, mas dava à hora de sua morte e ao seu destino o consolo da semelhança com Cristo.
Dos equívocos consagrados não escapou a crônica francesa. Maria Antonieta, decapitada em 1793, nunca ironizou dizendo que os pobres deviam comer brioches, se lhes faltasse o pão. Escreveria Jean Jacques Rousseau, mais tarde, que foi maldade de uma cortesã, madame Montespan, que inventou a frase e a transferiu para a boca de Antonieta.
Sem mergulhar tão longe no tempo; sem sair das montanhas de Minas, é possível lembrar casos que se celebram no folclore político. São episódios pitorescos do disse me disse, ou, se realmente se disse, não foi pelas bocas em que acabaram conhecidos.
Consta que Gustavo Capanema (1900-1985) queixou-se com José Maria Alkmin (1901-1974), ambos ministros em diferentes ocasiões, pelo fato de os habilidosos políticos de Bocaiúva se creditarem a autoria de um conhecido dizer, na verdade criado pelo conterrâneo Capanema.
Singular exemplo de frase que alçou equivocada paternidade:
“O que importa em política não é o fato, mas a versão do fato”.
E Alkmin, de inteligência rápida, se valeu exatamente da queixa para dizer que o sentido da frase estava então confirmado: o que prevalece não é o fato, mas a versão que dele se leva… Dono não é quem cria, mas quem os outros acham que foi o criador.
Ainda no cenário da vida pública no Estado, sem escapar da seara do folclórico raposismo, graças ao notável Nélson Rodrigues foi creditada a Otto Lara Resende uma soberba e cruel definição do jeito de ser de nossa gente:
“Mineiro só é solidário no câncer”.
Pois Otto morreu garantindo que jamais disse isso, o que, aliás, de pouco valeu, pois a versão da frase nunca dita já estava na boca do mundo, à revelia da vítima.
Carlos Drummond, que em 1924 colaborou em um breve tempo na “Gazeta Comercial”, e cuja esposa era de família da cidade, jurou nunca ter dito aquela frase que nos humilha:
“Feliz em Juiz de Fora é o Paraibuna, que passa de passagem”.
Deram-lhe a paternidade, contudo.
Persistindo em Minas, onde não são raros os equívocos de que estamos tratando, cabe lembrar que o ex-governador Magalhães Pinto é sempre citado nos casos de repentinas mudanças no cenário político, por ter dito, certa feita, que “a política é como a nuvem: olha-se para o céu é uma coisa; daqui a pouco olha-se de novo e já é totalmente diferente”.
Muito antes dele, quem assim falou, com as mesmas palavras, foi Raul Soares (1877-1924), também mineiro, ministro da Marinha no governo Epitácio Pessoa.
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Voltaremos à seara dos políticos, depois de uma incursão além do oceano, onde se colhe fartura ainda maior dessas mal definidas autorias entre célebres frasistas, ou os que delas se aproveitaram. Já de imediato, vem o caso do popular verso tido como autoria de Fernando Pessoa, vate de superior talento. Pois o conhecido “navegar é preciso, viver não é preciso”, que ficou muito bem na biografia do poeta, citado nos momentos mais elevados da inspiração lusa, na verdade vem de muito antes.
Podemos conhecer o verso em “Vidas Paralelas”, de Plutarco (106-48 aC), ao citar Pompeu, que gritava para seus marinheiros desacorçoados e temerosos: “Navegar é preciso, viver não é preciso”.
De onde teriam surgido, de que forma teriam propagado essas confusões? Como se disse, nem sempre praticadas involuntariamente. Ao acaso muito se deveu, é verdade. Mas à maldade também cabe um pouco. Aos descuidos dos cronistas alguma coisa se credita. Escorregões dos historiadores sempre houve. Nem sempre, portanto, é possível definir responsabilidades. As crônicas da Europa podem confirmar isso, se sobre elas se fizer uma pesquisa, superficial que seja.
Há casos em que alguém ou alguns se esforçam para corrigir o que erradamente vai passando pelo tempo. Ainda recentemente a “Société Voltaire”, com sede na França, garantiu, e disto afirma ter provas, que o grande sábio, patrono da instituição, jamais disse:
“Não concordo com uma só palavra do que você diga, mas vou defender seu direito de dizê-la até a minha morte”.
Se ele não disse, considere-se, contudo, que de tal afirmativa, em nome da liberdade de expressão muitas vezes violada, Voltaire gostaria de ter sido o autor…
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Manuel Lobato, que assinava crônica semanal no O Tempo, de Belo Horizonte, de quem fomos contemporâneos naquele jornal, lembrou que o poeta francês Henri de Régnier, morto em 1936, membro da Academia de Letras Francesa, deixou em seu livro “Ele, as mulheres e o amor” o seguinte verso: “O amor é eterno enquanto dura”. Disto muito tempo depois aproveitou-se o consagrado Vinicius de Moraes para reproduzi-lo em um soneto, sem que por isto deva ser condenado, pois mesmo antes dele foram muitos os que importaram tal inspiração do poeta francês.
Volto a Lobato para citar um comentário de sua autoria sobre plágios, que, se existem na literatura, são encontrados com a mesma frequência na música.
“Richard Strauss incluiu longo trecho da Nona Sinfonia de Beethoven no seu poema sinfônico. A música ‘Peixe Vivo’ tem um trecho da ópera ‘Dinorah’, de Mayerbeer. Nessa linha nem escaparia nossa conhecida ‘Cidade Maravilhosa’, de André Filho, que aproveitou trecho da ópera La Bohème, de Puccini. Famosa dos carnavais passados, ‘Nega Maluca’, de Fernando Lobo e Evandro Rui, é, na segunda parte, uma cópia da embolada ‘Vamos no Mato’, da dupla Jararaca e Ratinho.”
Contudo, observemos com atenção que nem sempre se revela tarefa das mais fáceis afirmar que determinados versos e sons estão sob paternidade suspeita. Pode ser que tanto seriam apropriações maldosas como equívocos nas transcrições. Vale ter em mente a lição de Tom Jobim, para quem música plagiada é a que tem, de uma outra, oito compassos consecutivos; quando são de caráter diatônico, isto é, marcas melódicas na linha da escala.
Já que se aventura no campo musical, com licença da literatura, propósito deste texto, e nele são tratadas como plágio às mesmas numerosas confusões que conhecemos nas frases de escritores e políticos, cabe registrar caso famoso que ocorreu em Juiz de Fora.
Em 1995, durante o Festival Internacional de Música Colonial, no Centro Cultural Pró-Música, ocorreu um espanto geral dos ouvintes, quando a orquestra regida pelo maestro Sérgio Dias executou “Matinas de Nossa Senhora da Conceição”, do Padre José Maurício Nunes, que a compôs em 1821 ou 1822. Havia um trecho claramente aproveitado no Hino Nacional, composto por Francisco Manuel da Silva (1795-1865), aluno do Padre Maurício e copista da orquestra da Corte. Um aluno com tudo para ter à mão o que criara seu grande mestre Padre, autor de mais de 500 peças, tendo sido também o primeiro a reger nas Américas o Requiem de Mozart. Portanto – vejam só! –, até o nosso Hino!
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Já que dispensamos seguir os fatos em linha cronológica, até mesmo indo e voltando de países sem ordem de referência, e antes que passe a oportunidade, fique registrada uma das mais famosas inverdades, repetida e jamais suficientemente desfeita na crônica da diplomacia.
Creditava-se autoria ao presidente francês Charles De Gaulle (1890-1970), e graças à comprovação da falsidade da autoria da frase, foi possível evitar que ela acabasse gerando constrangimento internacional. Na verdade, não foi De Gaulle quem se referiu ao Brasil dizendo “N’est pas un pays sérieux” (“não é um país sério”), porque realmente quem disse isso foi o jurista Evandro Lins e Silva (1912-2002), quando ministro do Exterior, por ocasião da chamada Guerra da Lagosta, pitoresco episódio provocado por um empresário brasileiro pouco responsável, que descumpriu acordo assumido com a França relativamente à apanha de lagosta na plataforma submarina do Nordeste. Para protestar, e apenas para isso, apareceu na região o porta-aviões Clemenceau.
Com essa presença ameaçadora as coisas logo se acalmaram, e os franceses saborearam o crustáceo de sua preferência. Mas a frase debochada ficou sendo de seu presidente, até hoje citado por dizer o que de fato nunca disse.
O jornalista Hélio Fernandes publicou em sua coluna uma dúvida, que certamente é formulada por muitos: a frase pertence a quem a cria ou a quem a imortaliza? Estava se referindo à conhecida “Restabeleça-se a moralidade ou nos locupletemos todos”, imortalizada por Sérgio Porto e outros cronistas, mas criada por Capistrano de Abreu (1853-1927).
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Mas voltemos à crônica política.
Em campanha eleitoral na década de 50, o Brigadeiro Eduardo Gomes, candidato à Presidência da República, fez o Brasil inteiro ouvir que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”, esquecendo-se de dizer que estava repetindo o que já havia dito Aldous Huxley. E Getúlio Vargas, que viria a disputar com o mesmo Brigadeiro, deixou de lembrar ao seu eleitorado que aquele “só o amor constrói” estivera, há muito, na boca de Schopenhauer.
(Um parêntese em relação à candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes. Ele se tornou vítima de maldade politicamente fatal, em frase que lhe atribuíram, e que jamais havia pronunciado. Havia dito, sim, que não precisava de votos de desocupados. Mas Hugo Borghi, amigo de seu adversário Getúlio, apregoou que dissera: “Não preciso dos votos de marmiteiros”, o que correu o Brasil como fogo de morro acima (fogo de morro acima, para repetir verso do grande Belmiro Braga).
Em Minas, o governador Francelino Pereira, espantado com os rumos da política nacional, ao indagar “Que país é este?” estava navegando em águas de Voltaire, quando o pensador francês disse a mesma coisa em seu personagem Cândido, que visitava o Eldorado.
Outro caso de imitação vai colocar em cena o ex-presidente Washington Luiz, ao retornar ao Brasil em 1945, após longo exílio. Instado por um jornalista a falar sobre aquele momento político, afirmou que “antigamente faziam-se eleições desonestas para eleger homens honestos. Hoje, fazem-se eleições honestas para eleger desonestos”. Certamente havia lido a mesma coisa em Gilberto Amado, que o antecipara com uma sentença deixada no livro “Presença na Política”: “Antes de 1930 a eleição era falsa, mas a representação verdadeira; depois passou a ser verdadeira, mas a representação falsa”.
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No tempo em que novas ideias tentavam fincar pé num Brasil monárquico, sobretudo nos idos de 1842, quando se assistia à epopeia de Teófilo Otoni, travavam batalhas parlamentares os liberais e os conservadores. Já então, há mais de 150 anos, entendiam muitos que quem quer que estivesse no Gabinete do Imperador, as mudanças seriam escassas, quase inexistentes, porque a História ensina que grupos políticos, quando alcançam o poder, liberais ou conservadores, são quase irmãos gêmeos. Vem daquele tempo um ditado que perdurou: “Nada mais parecido com um luzia do que um saquarema no poder”. Nada é tão igual a um conservador como um liberal no poder. Não foi outra a constatação do grande Joaquim Nabuco: “Não há liberal mais conservador que quando está no poder”.
Muito tempo depois, já agora nos dias que são nossos contemporâneos, certamente nada mudou. O ministro Delfim Neto garantiu que “nada mais parecido com o governo do que a oposição no governo”. Colega seu de Ministério, Roberto Campos veio atrás garantindo que “a esquerda no Brasil é tão somente a direita fora do poder”.
Mudou-se a ordem das palavras, mas a cópia é evidente, sejam quais hajam sido os autores. Nada de novo, como ensina a velha experiência francesa – “plus ça change, plus c’est la même chose”. Tanto é verdade, que muito antes de todos esses, o novelista parisiense Alphonse Karr (1808-1890) garantiu que “em política, quanto mais ela muda mais é a mesma coisa”.
Para encerrar, um episódio literário de Juiz de Fora, que vamos buscar nos registros de Haroldo de Carvalho Castro, grande intelectual mineiro, em sua “Aproximativas”, publicada em julho de 1982, citando o poeta Rangel Coelho, que, entrando num sebo, deparou com um livro de sua autoria, com dedicatória a Floriano, amigo fraterno. Descreve Haroldo: “Poetas e pensadores tomam frequentemente como frontispício ou mote, conceitos, períodos ou meros episódios na essência de suas inspirações. Rangel Coelho, literato de elevado nível cultural, conhecendo o episódio de Bernard Shaw, que encontrara entre obras usadas um livro seu antigo com dedicatória ao amigo, comprando-o, escreveu: Ao fulano, com meus cumprimentos renovados… O poeta juiz-forano defronta-se com situação análoga e escreve a Floriano Lopes: ‘Com a insistência do Rangel Coelho’.”
Tudo para lembrar Hélio Fernandes, sem vencer a dúvida: a frase é de quem a criou ou quem a imortalizou?
* Wilson Cid é Jornalista