Em decorrência ficamos, o Brasil e seus sucessivos governos, desprovidos de um assessoramento de alto nível e de informações estratégicas fundamentais para a vida do Estado
14-01-2025 às 10h06
Paulo Roberto Cardoso*
Brasil de hoje vive o encontro da verdade decorrente dos ventos libertários da Constituinte de 1988, bem como dos ventos da maré neoliberal dos anos 90 do século passado, ao menos no que concerne aos graves desafios colocados ao Estado. Aqueles que, como nós, viveram e presenciaram os ricos anos da transição democrática, da reconquista do Estado Democrático de Direito, recordam-se ainda daqueles dias de grande efervescência cívica, do momento em que a sociedade civil organizada e mobilizada promoveu, nas ruas, o reencontro do Brasil com a democracia e com o império da lei, sepultando de vez o arbítrio representado pelo estado de exceção.
Naquele contexto de eufórico triunfalismo constatávamos que um dos maiores equívocos cometidos pelo regime de exceção fora a confusão, deliberada, estabelecida entre as atividades de inteligência e informação e as atividades táticas operacionais de repressão. Tal confusão alimentou o trauma que, ainda hoje, serve para embaraçar e confundir o debate sobre a indispensável reconstrução do nosso sistema de inteligência e informação.
À parte a equivocada confusão verificada entre inteligência, informação e atividades operacionais de repressão, o Brasil, saído da transição democrática, foi já, em sua primeira eleição presidencial direta, lançado no furacão neoliberal que varria o mundo naqueles anos e cujo mantra era sempre a pregação de um Estado mínimo, emasculado, discurso que, ao satanizar o Estado, promovia uma falsa e ardilosa cisão entre este e a sociedade civil.
Assim ocorrem o desmantelamento e a fragilização através do mantra repetido à exaustão, sobretudo através de um sofisticado e oligopolizado sistema planetário de comunicações dos sistemas estatais de controle, fiscalização, inteligência e informações, pro- pondo no mais das vezes a clara privatização dessas atividades fins do Estado.
Eis que no contexto deste clima de verdadeira estadofobia é que assistimos ao total desmantelamento de nosso sistema de inteligência patrocinado por declarações desmoralizadoras do sistema promovidas pelo próprio chefe de Estado e de Governo de então.
Em decorrência ficamos, o Brasil e seus sucessivos governos, desprovidos de um assessoramento de alto nível e de informações estratégicas fundamentais para a vida do Estado, sobretudo em um mundo que se tornou conhecido por mundo VUCA volátil, incerto, complexo e ambíguo cuja globalização financeira parecia, como ainda parece, suprimir as fronteiras territoriais, culturais e nacionais.
De tal desapreço às atividades essenciais de planejamento e execução no campo da inteligência, informação, controle e fiscalização, restou à própria sociedade civil a vulnerabilidade e a exposição a toda sorte de manipulação em nome da inviolabilidade de direitos fundamentais, como por exemplo a proteção e sigilo de seus dados pessoais. Ao Estado fragilizado e permanentemente patrulhado reservou-se uma grave e séria interdição às atividades fundamentais à sua segurança.
Contraditoriamente, cidadão e a sociedade ficaram absolutamente desprotegidos quanto à preservação de seus dados e informações mais pessoais e privadas. Estes são disponibilizados e comercializados normalmente, sem qualquer restrição, por bancos, telefônicas, operadoras de cartão de crédito e até governos estrangeiros que, através de seus consulados e embaixadas, dispõem de informações sobre os brasileiros que possivelmente o próprio Estado brasileiro tem dificuldades em obter. Assim, o Estado no Brasil parece continuar submetido a uma vigorosa campanha que visa manter a interdição à coleta e manutenção de dados essenciais ao combate a uma criminalidade a cada dia mais sofisticada e articulada, por vezes com raízes dentro do próprio aparelho de Estado.
Todavia, felizmente a partir dos governos pós segunda metade da década de 90 do século XX, o poder público parece ter despertado para os riscos dramáticos de privar o Estado de uma política de inteligência. Assim, decorrida duas décadas entre a Lei 9.883, de dezembro de 1999, e a mensagem presidencial 198 de 2009 enviada ao Congresso Nacional, dispondo sobre uma nova Política Nacional de Inteligência, o Parlamento foi provocado a debruçar-se sobre este tema de vital relevância para o Estado e a sociedade no Brasil.
Assim quando da criação do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), a crucial questão da corrupção já ali era encarada com a acertada inclusão dentre os órgãos integrantes da Controladoria Geral da União. Todavia, decorridas mais duas décadas, assistimos estupefatos ao noticiário diariamente expondo-nos fatos avassaladores de corrupção e malversação de dinheiro público, chegando mesmo a corrupção entre nós possa ser de caráter endêmico. Nada mais falso, pois ela existe e está presente em todo o mundo, no setor público ou privado. Até porque, no mais das vezes, sempre que há um corrupto há também um corruptor, via de regra encastelado na iniciativa privada explorando orçamentos públicos.
Grave mesmo é quando já vivemos a expectativa de qual será o escândalo da semana, pois às vezes nos parece uma série interminável, o que paralelamente tem gerado outra grave distorção não menos nociva ao Estado Democrático de Direito, qual seja, a de um sistema de comunicação que cada vez mais parece substituir o Estado através de um regime de exceção midiático. A espetacularização transforma, em autos de fé, delitos cujo autores são denunciados, condenados e executados sem direito a apelação, restando moralmente mortos-vivos virtuais. Tais episódios recorrentes parecem-nos o desvelar de um perigoso processo de desqualificação das instituições públicas, processo cujo risco maior é levar o Estado Democrático de Direito ao descrédito de uma suposta paralisia provocada pela inoperância frente ao clamor já impaciente de uma sociedade exposta a um gigantesco volume de informações nem sempre idôneas ou responsáveis.
Sendo hoje um dos maiores clamores da cidadania a transparência e o trato ético da coisa pública, é de indagar-se do porquê à luz do disposto no item 6.10 da nova Política Nacional de Inteligência que trata dos riscos da corrupção para o Estado, inverbis: “A corrupção é um fenômeno mundial instituições e o descrédito do Estado como agente a serviço do interesse nacional. Pode ter, nos polos ativos e passivos, agentes públicos e privados”.
Aí está o desafio ao Sisbin e aos Tribunais de Contas, hoje dotados de sofisticadas ferramentas de tecnologia da informação e de recursos humanos e matérias da mais alta qualificação dentro da burocracia estatal, burocracia estatal, dispondo de bancos de dados e informações preciosas e decisivas para o cumprimento de sua missão constitucional pedagógica, que deve ser também de manter os órgãos de controle, fiscalização, inteligência a e informação devidamente conectados às informações necessárias ao uma ação preventiva do Estado.}
Em derradeiro, sempre haverá de parecer estranho à sociedade civil organizada que o sistema que cuida exatamente dos orçamentos e dinheiros públicos, hoje dotados de eficácia e eficiência, não estejam ainda inseridos no Sisbin. Tal medida contribuiria de maneira decisiva para dotar o Estado brasileiro de mais instrumentos e ferramentas em sua defesa com relação a este vírus nocivo que é a corrupção que, se não enfrentada com decisão política, pode nos levar efetivamente à paralisia, descrédito e desesperança.
Inserir os Tribunais de Contas no Sisbin é, portanto, passo corajoso para recompor, reconstruir e resgatar os sistemas estatais de fiscalização, controle, inteligência e informações, sem os quais não há mesmo como falar em Estado Democrático de Direito.
*Paulo Roberto é Servidor do TCEMG, Mestre e Doutor em Direito pela UFMG