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24-04-2025 às 10h10
Rufino Fialho Filho*
Os gregos, através dos mitos contam histórias compactas que, muitas vezes ou quase sempre, nos ajudam a entender as situações mais complexas. Por exemplo, a história do deus marinho Proteu.
Pela lenda, quem conseguisse capturá-lo ficaria conhecendo o futuro e seria o dono da história. O deus se protegia pela metamorfose e escapava, com muita facilidade das mãos dos homens – em suas múltiplas formas, assim Proteu se defendia.
A construção de um homem e também a definição de um homem são obras complexas. Há quem se arrisca a capturar, pelas palavras, um homem, uma vida, uma personalidade, um destino.
É difícil.
Eu conheço uns tantos André Carvalho. Conheço o André Carvalho da TV Itacolomi. Era o talento puro. Sabia dizer as coisas e era um polemista raro. Naquela época, na televisão mineira, André sobressaía pelo talento e pela inteligência.
Líder, quando o assunto era criança, educação e programação infantil. Sua estrela brilhou naqueles anos 60 quando brilhou a TV Itacolomi, líder em audiência, até que chegou uma concorrente: a Globo. Ali, diante da televisão, admirávamos a inteligência. Depois conheci os outros.
Aquele homem, metade de homem, era um gigante e haveria de ser maior todos os dias: um grande homem.
Conheci o André, em sua face-fase Juan. Quantas mulheres belas e apaixonadas! Qual era a lição, que não se poderia perder? Magnânimo, ele teorizava sobre histórias sofridas e vividas, falava de mulheres e de ternuras. Era contundente. Seus segredos e suas receitas ficavam nas entrelinhas dos textos e nos silêncios dos botecos – se for possível este recurso imaginário.
Às vezes, observando atentamente o seu rosto expressivo e a sua palavra de clara pronuncia, imaginava se o grande golpe da conquista e da sedução do André, não estaria naquele gesto, sempre sacana, de tirar os óculos e revelar seus olhos, profundamente, verdes? Arranjaria óculos e lentes verdes.
Queria, ansiosamente, aprender com André. Ele lia três livros por semana, um romance, pelo menos. Poxa, mas onde arranjava tempo, se arrastando em cima de suas muletas pelas ruas, pelas escadas e em nossos corações? Ele lia, mas ele também escrevia, e seus livros para crianças, suas peças de teatro, seu jornal semanal Gurilândia, seu trabalho de copy no Estado de Minas, o jornal, quando a cada debruçada sobre um texto se aprendia a escrever e a viver, como era possível?
Mais tarde, conheceria um outro furacão igual: Darcy Ribeiro. Através do Darcy compreendi e conheci um pouco mais André Carvalho: o furor da conquista do outro, independente do ser se feminino ou masculino. André, assim como Darcy, ao conquistar o outro, hegelianamente, realiza a ânsia (amargura) da conquista da liberdade e do conhecimento. Ou seria liberdade e conhecimento? Liberdade é conhecimento?
Ali na redação do jornal Estado de Minas, com suas editorias separadas por divisórias de madeiras, na altura de um metro e meio, que chamávamos “os currais”, André se aproximava, sempre sorrindo, com uma saudação debochada, encostava suas muletas em um canto e debruçava sobre nossas matérias.
Tentava conhecer o André através da suas relações com os companheiros. André e Wander Piroli. Dois grandes monstros. André, editor do Wander e dono da Editora Comunicação, um marco na história editorial brasileira, quando Minas Gerais abandonava Belo Horizonte como centro editorial e a nossa Editora Itatiaia alçava voos para sua grande aventura paulista.
Wander Piroli explode para o Brasil (André estava ali). Wander é o grande escritor do Brasil que resistia (e André estava ali). Ser editor é algo que envolve a construção de um personagem que é empresário e talento ao mesmo tempo – aqui, falo de editor de livros, porque, na nossa redação, André era um copy, Paulo Lott, o subeditor. Ou era o contrário? Ou André era o sub e Lott, o copy? Uma dúvida que não resolvi até hoje e nem entendi na estrutura do jornal. Revessavam? O fato era que André e Lott eram os dois primeiros leitores de nossas reportagens policiais.
Eram os primeiros a nos ensinar a escrever, a cortar palavras, a arriscar a grande aventura de seguir o faro da grande reportagem. André e Paulo Lott dominavam a redação na editoria de Polícia até a chegada do chefe. O chefe era Wander Piroli.
O editor de talento que rasgava matérias, (“escreva de novo”) dava sonoros esporros e conduzia a empreitada com uma alegria que contagiava o lá distante editor da Geral, Rogério Peres – que um belo dia, nos comanda a todos, foi a cobertura de sexta e sábado, numa santa cobertura da invasão pela polícia militar dos prédios da Faculdade de Medicina, onde estudantes realizavam seu encontro nacional, resistiam à ditadura e nós registrávamos a história dessa resistência.
Era a contribuição do Estado de Minas arrancada pelos editores e pelos repórteres. Duvido que algum de nós não tenha se emocionado com o bilhete, afixado no quadro de aviso, pelo Pedro Aguinaldo, o jornalista e diretor do jornal, cumprimentando a todos nós. Aquela segunda-feira marcou para todos nós, uma mudança radical.
O “senhor da teoria da omissão” revelava, sinalizando para o mundo, que outra teoria gestaria um novo jornal e um novo tempo. Era ligar as antenas. André atento, copidescando minhas matérias, ordenava, com as cautelas de um bom psicólogo: avance.
André e João Gabriel. A admiração mútua não eliminava os atritos do agressivo Bié. Chegava bravo, lúcido, argumentativo, defendendo a obtenção do alto de página para a sua matéria. André se divertia. André e Alberto Sena. Talvez fosse com quem André mais se entusiasmava pelo texto, pela sensibilidade e pela audácia em pontificar do alto da sua proximidade geográfica com a Curvelo de André Carvalho.
Eram homens telúricos, voltados para o pequi e para a beleza das nossas matas – assim André hoje vive cercado pelos filhos, pela bela Margareth e por mais de 38 mil metros quadrados de matas e lagoas. Seria do seu aprendizado com o ecologicamente correto Alberto Sena Batista?
Herança do menino que deixou Montes Claros? Ou melhor, herança do menino que arrastou Montes Claros, aos trancos e barrancos, pelas garras do seu coração e o expõe, sempre que possível, nas linhas do que escreve?
André e Marquinhos. Era pau. Marquinhos teve talento e força para segurar aquela barra pesada: André e Wander. Wander era duro com Marquinhos e André pior ainda. Na frente, surgiu Marquinhos, maior do que todos nós. Os dois ferreiros sabiam quem moldavam.
Fui conhecendo o André através de algumas de suas mulheres. Era um outro conhecimento. O mistério confirmava: André como um instrumento de grande ternura e respeito por cada um ou por cada uma. Ele seria um grande conquistador por que era um psicólogo? Quem queria aprender com André, haveria de procurar caminhos. Até que André chegou em Margareth. Outra grande lição do mestre do amor: agora, ele encontrou as razões de tudo aquilo que construiu antes.
O André também provoca inveja, medos e ódios. Aí seria um paralelo com alguns outros que pouco ou quase nada conheço. Eu conheci o André diante deste outro. Fecham portas para o trabalho de André Carvalho – medo da competência. Fecham portas para a expansão do talento empresarial de André – ele abre outras portas.
(Entro na sala da sua nova editora, Armazém de Ideias, já um sucesso de títulos e de respeitabilidade em todo o Brasil. Ali, sobre a mesa um contrato milionário: André é contratado pelos paulistas, cheios de grandes e bons editores, aqui, em Minas, para editar uma série de novos livros didáticos).
André traz a materialização dos versos de Brecht, que estão também compostos em aço na entrada da sede do Diário do Comércio e que foi feito editar em aço, pelos filhos do José Costa, para sintetizar outro como o André. São homens destemidos e da resistência, da luta de todos os dias e de todas as horas, que jamais se entregam.
…
Conheci estes Andrés, ao longo dos anos, algumas poucas décadas, mas eu conheci André, dono do Jornal de Domingo, com o Humberto Araújo, seu primo lá do Norte, de Januária e do algodão. Conheci seus conflitos e a sua dura construção de um veículo (“Não tem a mesma dimensão do Binômio”, André contém os mais afoitos, como eu).
Eu conheci, na década de 80, André Carvalho como homem político (Curvelo não sabe o que perdeu como prefeito). Era um político inteligente e de princípios. Portanto, peixe fora da água. Luta dura e difícil. André era um companheiro e convocado para funções, difíceis e complexas, na área de comunicação, fez profundas marcas na área pública. Um dia, outros contarão a história dessa fase da imprensa pública mineira: André revolucionou? Revolucionou. Melhor: foi um administrador competente e, esta história, quem melhor conta é o bom companheiro, o jornalista Alencar Abujamra.
Assim, eu posso abrir o leque para um outro rumo. Sei também que estes textos funcionarão como um diálogo com André, que não é nenhum bobo e assim poderá nos consertar, sem censurar.
Desmente, André?
- A Imprensa Oficial, onde se edita o nosso jornal oficialmente oficial, o Minas Gerais, André, Tião, seu velho escudeiro, deu lucro durante dois anos. Mais ainda, deu resultados, em termos de imprensa, para todos os mineiros com as belas edições do Suplemento Literário, com as edições competentes e oportunas da Revista, editada pelo nosso Ivani Cunha.
- A TV Minas, a emissora oficial do Estado de Minas Gerais, que só nos trouxe dores de cabeça. Já imaginaram uma emissora cujos registros de audiência não ultrapassavam traços, de repente equilibrar-se em 1 ou 2 pontos e ter piques de audiência de até 5, 6 pontos? As pressões chegaram de todos os pontos e vieram de avião, desceram na Pampulha e bateram na porta da sala do governador. Osso duro de roer. Para que insistir em fazer uma imprensa competente.
De todas as nossas lutas políticas, em que estivemos juntos, a melhor delas foi em torno da rádio Guarani Onda Rural, uma criação vitoriosa de um bando de loucos, sob o comando de Gilberto Menezes e André Carvalho. (Aos incautos, não há linearidade na história). Foi no governo de Francelino Pereira e era secretário da Agricultura o deputado federal Gerardo Renault.
Na equipe da rádio Guarani Onda Rural, os loucos entraram pelas ondas curtas e descobriram que o campo era o mundo: as cartas chegavam dos nossos agricultores perdidos no Japão, na Coréia, no Afeganistão, nos Estados Unidos e até na Suíça, além, naturalmente do campo que ficava no distante Jequitinhonha, no longínquo Triângulo Mineiro e no outro continente chamado Norte de Minas.
Sucesso medido por pilhas, quilos, volumes, metros de cartas, uma rádio que falava e escrevia. Mas era uma rádio do governo e da iniciativa privada, defendida pelo empreendedor e audacioso, talentoso, Camilo Teixeira da Costa, da direção dos Diários e Emissoras Associados em Minas Gerais.
Aí a sua tragédia, seu destino. Era uma rádio da iniciativa privada. Feita no governo de um governador nomeado, um inimigo do povo. Venceu Tancredo Neves. Da Secretaria da Agricultura, saiu um político eleito pelo voto e entrou um fazendeiro, líder da ABCZ, Associação Brasileira dos Criadores de Zebu, Arnaldo Rosa Prata.
Saiu Gilberto Menezes e entrou um cidadão também conhecido como Chico Brant. Agora, haveria que acabar com aquela mistura indecente de iniciativa privada e Estado. A rádio não poderia ser Rádio Guarani Onda Rural. Afinal, existia a Rádio Inconfidência, a emissora oficial do governo do Estado de Minas Gerais.
André Carvalho ficou em seu canto, comandando 26 companheiros e o sucesso crescendo e dando dores de cabeça para o iniciante governo Tancredo Neves, em uma área sensível. A ordem foi estatizar – isto é, naquele início da década de 80. Assim, burocraticamente como caberá sempre a um burocrata do jornalismo, a rádio Guarani Onda Rural foi fechada e reaberta na Rádio Inconfidência, onde dias depois desapareceu na onda burra da pior das censuras: a censura à competência e ao sucesso.
Minas perdeu sua rádio alegre e cheia de histórias (Wander Piroli escreveu algumas das milhares de pequenas histórias – peças a serem recolhidas e editadas por algum canalha, algum dia).
Conheci André Carvalho como político e este foi o Proteu que visualizei por mais tempo. Consegui ver André crescendo nas reuniões do Palácio dos Despachos, onde a comunicação do governo se discutia de portas abertas. Aqui um aprendizado definitivo: política só se faz com diálogo; embora insistam em silenciá-lo, ele constrói tribunas para falar alto, muito alto.
Com o romance Cuba Libre, André Carvalho conquista o Prêmio Casa das Américas.
Na sua estante, um prêmio Jabuti, como editor, o maior prêmio do Brasil.
Na Europa, Paris entregou outros cinco prêmios para André Carvalho.
André é um político diferente e foi por isso que Newton Cardoso chamou André para o seu lado e entregou-lhe funções difíceis. Naquele momento assumiria a direção da Imprensa Oficial e, em seguida, da TV Minas.
Conheci o super-homem
E ele se chama André
Todos os dias grita Sazam!
E transforma todos nós!
* Rufino Fialho Filho é jornalista