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23-04-2025 às 13h00
Maria Rosaria Barbato*
Quando eu era criança, esperava o dia de Pasqua com ansiedade. Na minha família – alegre, barulhenta, napolitana – a Pasqua sempre foi uma grande festa.
Na Campania, a região de Napoli, a Pasqua não acontece apenas na igreja. Ela toma as ruas, entra nas casas, perfuma as cozinhas e se pendura nas paredes e nas portas de casa em forma de palma abençoada.
Na minha família, como em tantas outras de Napoli, esse tempo é tecido de rituais. E cada gesto, cada prato, cada perfume carrega uma história que resiste ao tempo.
Quando penso na Pasqua, penso também em Ottaviano, a cidade onde fui criada aos pés do Vesuvio. Pequena e as vezes invisível para muitos, mas, para mim, carregada de vida, de lembranças, de nomes e cheiros que nunca se apagam. Ali, a tradição não era apenas algo que se repetia, mas era algo que nos formava e se insinuava na pele, como perfume antigo que fica mesmo depois de ir embora. Ainda hoje, quando volto, o coração bate mais forte. É como se as pedras da calçada me chamassem pelo nome.
A celebração começa no Domenica delle Palme, com a tradição dos ramos de oliveiras que são levadas à missa para serem abençoadas, e depois guardados com reverência na cozinha ou atrás da porta principal, em símbolo de proteção, paz, começo.
Lembro que, para os que esqueciam de levar seus ramos, o padre da Igreja de São Francisco, na época, o querido Don Pasquale deixava uma cesta cheia à entrada da igreja. Porque, na tradição napolitana, ninguém deve ficar de fora.
A Settimana Santa tem seus próprios andamentos. Na quinta, Giovedì Santo, famílias inteiras saem para o tradicional struscio, um passeio pelas igrejas da cidade, para visitar os Sepolcri – altares especialmente preparados para guardar o Santissimo Sacramento, decorados com flores, velas e símbolos da Passione, cumprindo o antigo rito das “sete igrejas” (ou às vezes três).
Mais do que uma peregrinação, o struscio era uma ocasião de reencontro entre vizinhos, entre parentes distantes, entre silêncios e saudades. Para mim e minhas amigas- e acredito, para muitos, também era uma ocasião rara de ver jovens fora dos seus círculos habituais. Trocavam-se olhares, risos discretos, cochichos e até umas fofoquinhas entre uma igreja e outra.
Nesse mesmo dia, a tradição napolitana manda preparar a impepata di cozze, uma sopa simples e ardente de mexilhões, com pimenta, tomate e pão embebido. Segundo contam, até Ferdinando I di Borbone, amante da boa mesa, teria se rendido à receita, buscando uma forma de manter o jejum com sabor.
Na Venerdì Santo, o rigor era absoluto. Nada de carne. Só peixe, pratos leves, ou até o silêncio da fome voluntária. Era dia de recolhimento e de lembrança e, às vezes, de jejum, um pouco por fé, um pouco por tradição, um pouco para se preparar à grande abbuffata (comilança) do domingo.
Na Sabato Santo, as cozinhas despertam cedo. Tudo já está em preparação, especialmente o casatiello, o tortano, a pastiera. É um dia de fermento, cheirinho de flor de laranjeira e mãos na massa. Um dia de cuidado e de espera.
O casatiello, estrela do Domenica di Pasqua, tem origens muito antigas, provavelmente da época dos primeiros cristãos napolitanos. A massa, feita com banha, é recheada de embutidos e queijos, e decorada com ovos inteiros ainda com casca, presos com cruzes de massa, símbolo da cruz e da ressurreição.
O tortano se parece, mas os ovos são misturados ao recheio e não aparecem na superfície. Dizem que o casatiello é para honrar o sagrado; o tortano, para saborear o profano.
A pastiera, rainha das sobremesas, nasceu num mosteiro. Conta-se que foram as irmãs do convento de San Gregorio Armeno que a criaram, misturando trigo, ricotta, flor de laranjeira e o tempo de uma espera. Também se diz que esse doce foi preparado pela primeira vez por Partenope, a sereia mítica que, segundo a lenda, fundou Napoli. Dizem que ela emergia das águas do golfo toda primavera para cantar aos habitantes da cidade, e que, em agradecimento, sete das mais belas jovens dos vilarejos ofereceram sete presentes: farinha, ricotta, ovos, grão, água de flor de laranjeira, especiarias e açúcar.
Há muitas variantes da pastiera. Cada mãe, avó, e hoje também pai ou avô cozinheiro, guarda seu segredo. A base é sempre a mesma, mas é na variação que mora a identidade. E todas, com suas pequenas diferenças, fazem parte do mesmo grande patrimônio partenopeo.
A pastiera, mais que um doçe é um poema de paciência e fé.
Na tradição napolitana levada a sério, preparar a pastiera pode demorar até uns 15 dias.
Para quem ainda prepara a pastiera como antigamente, com trigo cru, tudo começa dias antes.
O grão é lavado e deixado de molho por 3 a 5 dias, depois cozido lentamente por 1 a 2 dias, até ficar cremoso e aromático.
A ricotta é misturada ao açúcar e deixada descansar na geladeira por 2 a 3 dias, para absorver o sabor e eliminar o excesso de soro.
A massa frolla, feita com manteiga ou banha, também repousa — 1 a 2 dias, para ganhar estrutura e perfume.
E depois de assada, nada de comer.
A pastiera precisa de 2 a 3 dias de descanso, para que os ingredientes se abracem, os perfumes se integrem e o sabor alcance sua plenitude.
Dizem que o momento perfeito é entre o quarto e o quinto dia após o forno.
Como ouvi uma vez:
“A pastiera não se faz, ela amadurece.”
Há nela um tempo de gestação, de nascimento, de enriquecimento.
Como a memória. Como a tradição. Ela não existe num gesto só, mas no tempo que se dá para que tudo se torne verdadeiro.
Sou uma ótima cozinheira – quando tenho tempo! mas nunca preparei uma pastiera. Sempre apenas as comi.
Sempre vieram das mãos das mulheres da minha vida.
Elas sabiam o ponto do trigo, a medida certa da flor de laranjeira, o silêncio necessário para o doce revelar sua alma.
E talvez por isso ela me fale tanto de herança. Das mãos femininas. Das pausas que a vida exige para ser saboreada de verdade.
Aliás — se alguém tiver preparado uma pastiera, guarde um pedacinho pra mim.
Só pra matar a saudade, e pra sentir- mesmo de longe – o gosto de casa.
Domenica di Pasqua é dia de familha. Mas tem o tempo também para os amigos que se juntam no final da tarde para um café no Bar da cidade do lado, ou, mais frequentemente, na segunda-feira depois da Pasqua, a Pasquetta, o Lunedì dell’Angelo – Segunda do Anjo -, pois ainda é feriado.
É o dia da clássica scampagnata, o piquenique com os amigos, a fuga ao campo, ao mar, ao verde.
Partilham-se as sobras da Pasqua: pão, vinho, favas frescas, carcioffla arrustuta, alcachofras na brasa … E a tradicional menesta ’mmaretata — a “sopa casada” napolitana, feita com verduras e carnes.
Ou, como fazemos lá em casa, reinventamos a tradição com tortellini e menestra. Supostamente, um prato leve… para compensar os bagordi (exageros festivos) do dia anterior. Porque a tradição também sabe ser leve.
Mas no domingo de Pasqua tudo se revela. Na minha casa, e em tantas outras, o almoço começa com o ritual do Benedetto Pasquale, em dialeto napolitano Beneditt´.
O Beneditt´ é o antipasto abençoado feito com o ovo cozido, símbolo universal da vida que renasce; o salame e a soppressata, que marcam o fim da privação e o retorno à abundância; a ricotta salata, símbolo de pureza; o pão, memória do corpo de Cristo; e há quem acrescente o toque cítrico de uma laranja ou limão, para lembrar que a primavera voltou.
Na nossa casa, bastava o essencial: ovo, salame e ricotta salata.
Na Pasqua normalmente os primos de Capua, cidade próxima de Caserta, vinham, e a casa se enchia de vozes, risadas, cheiros e música.
Mas meu tio e minha tia, vizinhos, vinham as vezes com sua travessa mais completa – a fellata napoletana – e a colocavam sobre a mesa como quem deposita um tesouro antigo. Às vezes se adicionavam alcachofras, provolone, azeitonas.
Mas o que unia tudo antes de qualquer garfada, era partilhar a bênção doméstica.
Na tradição, ainda marcada por um sabor patriarcal, o capofamiglia era quem abençoava, geralmente o pai ou o avô.
Mas, já quebrando esquemas, na minha família, minha avó (nonna) também realizava o rito, com a autoridade silenciosa que só ela tinha.
Na casa cheia de parentes, cada um, ao redor da mesa, abençoava cada membro do seu núcleo familiar com o sinal da cruz, traçado com a palma e a água benta trazidas da missa.
E passava por cada cômodo da casa, traçando o sinal da cruz sobre cada um(a).
Depois, olhava para a montanha, para o Vesuvio, para a rua, para o céu, e abençoava também o que estava longe.
Era uma bênção sem fronteiras, como um sopro de proteção lançado ao mundo.
É a tradição que se respira e se encarna por ser parte. Um pertencimento que não se aprende nem se conquista. Apenas se vive simplesmente por ser.
Em seguida, o casatiello e o tortano dividiam o lugar de honra e acompanhavam o Beneditt´.
Depois, na minha casa, a grande espera era pelos bucatini alla chitarra — massa longa cozida ao forno, recheada com molho de carne, pequenas polpettine, fatias de berinjela e provola affumicata derretendo no centro. Me parece sentir o cheiro!
E então, como mandam os costumes napolitano vinha o agnello assado, o cordeiro, símbolo da Pasqua cristã – apesar de não agradar a todos- servido com batatas e ervilhas. Não é o prato que importa, é o que ele carrega.
A carne era menos importante que o rito, porque ali, tudo tinha o gosto do que é transmitido, e não apenas servido.
A sobremesa, é claro, era a pastiera napoletana.
Nonna morava conosco e, por isso, à tarde a família inteira vinha, não só para estar com ela e se reencontrar, mas também, claro, para comer a pastiera. Para sentar um perto do outro, trocar uma palavra, um riso, preenchendo a boca de sorrisos, de doces e tomar um limoncello caseiro.
Cada chegada era uma festa. Cada reencontro, um ritual. A mesa crescia, o tempo se dilatava e era como se o mundo coubesse inteiro dentro da sala. Era como se o tempo parasse para nos lembrar quem éramos juntos.
Hoje, renovando a tradição, meu pai me fez uma vídeo-ligação.
Na hora exata do rito. Do outro lado da linha, o mesmo som de sempre: a palma abençoada, a água benta, o Beneditt´ disposto sobre a mesa, o texto da bênção e as nossas orações.
Sem minha avó, é verdade, a família – mesmo unida pelo afeto- já não se reúne tão numerosa. O tempo muda muitas coisas, tal como as presenças e as ausências.
Nossa família, de alguma forma, se enriqueceu na linha descendente. Hoje, a nova geração está ali. E o gesto continua. Talvez menos formal. Mas não menos sagrado.
Quem abençoa, como nos anos da minha infância, é meu pai, Renato.
A novidade é que, agora, quem recebe a bênção conosco é o pequeno Renato, com seus cinco meses e sua primeira Pasqua.
Uma alegria imensa. Uma emoção difícil de descrever.
Dois Re-natos, juntos sob o mesmo teto, no dia do Renascer.
O avô que transmite; o neto que acolhe. Ele ainda não fala, mas já pertence.
Porque há heranças que se insinuam antes mesmo de serem compreendidas.
Um gesto antigo, um ciclo novo. E um amor que atravessa gerações.
Hoje, a saudade bate forte no peito. E sei que esse sentimento não é apenas meu, nem apenas de agora. Ele vem de longe, é passato, presente e será futuro.
É o que pulsa no sangue de todos que partiram. E, ainda mais forte no dos que nunca mais voltaram.
No sangue de quem nunca esteve na Itália, mas ouviu sua história da boca dos bisavós, dos avós, dos pais e mães, ou mesmo descobriu sozinho(a), lendo, estudando, sentindo.
Está vivo em todos que herdaram, mesmo sem pedir, ou às vezes sem saber, a italianidade espalhada pelo mundo que, em força da integração, e afirma como italicitá.
Nos filhos, netos e bisnetos de quem atravessou oceanos, escalou montanhas e deixou o coração por trás, na Itália.
Gente que carregou apenas um nome, um prato, uma foto na bolsa, e uma saudade costurada na pele.
E em tantos que, hoje, veem suas raízes ameaçadas pela imposição do esquecimento oficial do governo italiano de Giorgia Meloni, que tenta reescrever a história da diáspora italiana ao limitar, por decreto, o direito à cidadania de milhões de descendentes.
Como se fosse possível apagar uma identidade construída ao longo de gerações, feita de memórias, afetos e pertencimento, com o simples gesto burocrático de uma caneta.
Identidade não precisa de carimbo. Mas o ser humano precisa de reconhecimento.
De acolhimento, de ter nome e lugar. Não basta saber de onde se veio. É o reconhecimento que dá dignidade à memória e garante que ela não se perca.
É por isso que escrevo.
Não só por saudade, mas porque sinto que, entre o sagrado e o profano, entre o que fui e o que continuo sendo, é ali que a minha história vive e resiste.
Vive em mim, mesmo bem integrada no Brasil que me acolheu, mas sem nunca deixar de vibrar, no fundo do peito, a música das minhas origens.
Nos gestos pequenos, nas palavras repetidas sem saber por que, nos sabores que voltam como lembrança.
Penso a mia nonna, che ha sempre vissuto in Italia. Non ha mai parlato di cittadinanza. Non ne aveva bisogno.
Ma in ogni suo gesto c’era già ciò che tanti e tante oggi lottano per veder riconosciuto: un nome portato con orgoglio, un piatto che raccontava una storia, un rito che diceva, senza bisogno di parole, chi siamo.
Gli stessi gesti, le stesse memorie, che i nostri antenati portarono con sé attraversando l’oceano, con quella foto, quel piatto, quel nome e una nostalgia.
E oggi vedo, in mio nipote, quello stesso senso di appartenenza che già si insinua — ancora senza parole, ma già vivo.
Perché ci sono identità che si riconoscono prima ancora di poter essere spiegate.
E penso anche a chi quell’eredità l’ha ricevuta, ma non può legittimarla.
A chi vive un’identità senza riconoscimento.
O a chi, forse, non conosce ancora davvero le proprie radici, ma che — se riconosciuto/a — potrebbe ritrovarle con dignità.
Perché l’appartenenza può anche essere un invito.
E il riconoscimento, una forma di risveglio della memoria.
Porque é nessa vibração que a cidadania faz sentido.
Não apenas como um direito estritamente jurídico, mas como o reconhecimento profundo de uma história que continua.
Que continua em mim, hoje, emigrada no Brasil, toda vez que o perfume do raminho de oliveira seco me transporta de volta à casa da minha infância e me lembra que aquele sentimento de pertencimento já existia por si só. E me entristece saber que, dentro de duas gerações, todo esse patrimônio — que é meu, mas também semente do futuro — corre o risco de se perder, sacrificado no altar de uma burocracia cega e que desresponsabiliza, e de um governo que, em vez de construir pontes com seus filhos espalhados pelo mundo, ergue barreiras frias e desumanas, tratando a memória como um fardo, a identidade como um incômodo e a cidadania como um favor a ser concedido
O Beneditt´ Pasquale nos ensina que a tradição é o amor que persiste, que a fé pode morar num pão, e que a bênção, quando nasce do cuidado, encontra sempre o seu caminho.
Não é apenas um rito bonito. É uma forma de lembrar, com o corpo e com a alma,
que pertencemos. E que esse pertencimento, para ser inteiro, precisa ser reconhecido.
*Maria Rosaria Barbato é professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Conselheira do Comitê dos Italianos no Exterior de Minas Gerais COMITES mG e Presidente da Comissão Associativismo, Integrante do Comitê Acadêmico do Instituto Ítalo-Brasileiro de Direito do Trabalho, Coordenadora Executiva Nacional da Associação Brasileiro da Juristas pela Democracia, Coordenadora do Partito Democratico da Itália na America do Sul.