Será que tudo isso ainda importa? Quero acreditar que sim, apesar de intuir que pouco sabemos sobre a mineiridade, em termos acadêmicos, além das incontáveis teses sobre Grande Sertão: Veredas
15-11-2024 às 11h11
Diego Vinícius Vieira*
Dia desses, partindo do triângulo mineiro, fomos Amanda e eu pegar estrada rumo à capital paulista. É curioso como sempre nos espanta, e nos diverte, observar aquela multidão orgulhosamente apressada, aparentemente indiferente à simbólica concretude vertical de São Paulo: se há alguém estacado pelas ruas admirando os arranha-céus, certamente não é um paulistano. O tal do progressio, sabedoria interpretativa de Adoniran Barbosa em Conselho de Mulher.
Tenho lá a grata alegria de poder encontrar meu grande amigo Vinícius, um paulista muito simpático que um dia se permitiu um desterro acadêmico em Belo Horizonte e, assim, nos conhecemos. De início, Vinícius nos apresentou o curvilíneo e majestoso Edifício Copan, demonstrando-nos sua riqueza concreta e orgânica da identidade paulistana. Dali, como singulares transeuntes de uma cidadela mineira (exceto Amanda, todas as mulheres agarravam-se tensas às suas bolsas, portanto Iphones 15 Pro Max), seguimos a pé pelo centro e encontramos um dos amigos de Vinícius.
Entreolharam-se chocados: como pode, numa terça-feira, nos encontrarmos assim no centro de São Paulo?
O amigo, ciente da nossa condição turística, sugeriu que visitássemos o Museu Judaico de São Paulo, logo ali. Fomos. O espaço é na verdade uma antiga sinagoga, o Templo Beth-EL, projetado ao estilo bizantino por encomenda de imigrantes europeus. O interior é ornado por tecnologias interativas que permitem ao visitante um pequeno vislumbre dos inúmeros rituais judaicos.
Dentre as telas interativas, tomou-me especialmente a atenção a descrição de Sucot, festa judaica que se inicia no dia 15 de Tishrei, de acordo com o calendário judaico, também conhecida como Festa das Cabanas ou Festa das Tendas. Sucot relembra os 40 anos dos hebreus no deserto após a libertação do cativeiro no Egito. Nesse período o povo judeu não tinha terra própria, eram nômades e viviam em pequenas tendas ou cabanas. Como forma de simbolizar este período, durante a celebração de Sucot, os judeus fazem as suas refeições sob folhas e galhos ao ar livre, em uma sucá (cabana) com vistas para o céu.
Para os paulistanos que visitam o museu talvez o ritual passe despercebido – e rogo a Deus que os judeus não considerem a minha inábil comparação uma heresia – mas ali não pude conter a lembrança das histórias que me contaram sobre minha avó, devota matriarca mineira que exigia essencialmente o mesmo da família durante as festas de Santo Antônio do Quebranzol e de Nossa Senhora da Abadia, insuspeitos rincões do interior de Minas Gerais.
Na época residiam todos na fazenda em que meu pai nasceu por mão de parteira, e a família comparecia basicamente a esses dois eventos anuais. Para a festa de Nossa Senhora da Abadia em Água Suja (povoado de mineradores hoje conhecido por Romaria-MG) seguiam todos a pé, mas com toda bagagem e quitutes mineiros amontoados em carros de boi.
Quanto maior o peso sobre esses carros, maior é a fricção da roda sobre o eixo de madeira e, conforme nos ensinaram, mais bonito é o som. Foi daí que criaram a famosa expressão mineira “carro apertado é que canta”, particularmente empregada todas as vezes que algum adolescente reclame do excesso de estudos, atribuições e afazeres diários.
Seja para a festa de Santo Antônio do Quebranzol ou de Nossa Senhora da Abadia, as acomodações eram sempre as mesmas, cabanas montadas ao ar livre sob o céu estrelado dos dias de festança, sempre regados com generosas talagadas de pinga de alambique, pão de queijo feito com polvilho, queijo e ovo caipira da roça, acompanhados de carne de porco conservada na banha. Sobremesa? Cafezinho com rapadura coado na hora.
Pasmem. O autor que se debruça sobre tais palavras é um millennial, em português, geração Y. Forjados pelos meios acadêmicos distantes da interioridade mineira, fomos aculturados a perceber a gigantesca importância das identidades raciais, sexuais e ecológicas. As nossas avós, portanto, são religiosas alienadas, machistas, misóginas, homofóbicas e ecologicamente inconsequentes. E muitas são mesmo, mas o que mais elas são?
Nossas avós são o elo da potente identidade mineira, são elas que ensinam às nossas mães, e que ensinam a nós, sobre o infalível socorro de Maria aos desesperados candidatos das bancas de mestrado da UFMG: “Maria, passe à frente!”. São elas que enchem as nossas malas de petiscos para não sentirmos fome na estrada. São elas que se agarram a rezar o terço para chegarmos salvos ao nosso destino. São elas que nos recebem de volta
exultantes e com a mesa cheia. São elas que nos obrigam a comparecer às festas católicas, religando-nos à nossa comunidade de iguais, enquanto permanecemos mentalmente absortos nos intermináveis debates identitários liberais que presenciamos nas capitais.
E o que é identidade? O que é mineiridade? Será que tudo isso ainda importa?
Quero acreditar que sim, apesar de intuir que pouco sabemos sobre a mineiridade, em termos acadêmicos, além das incontáveis teses sobre Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.
E sobre a participação das Universidades, sobretudo mineiras, na compreensão dessa identidade? Qual é?
Sobre aquilo que ainda pretendemos compreender sobre a identidade brasileira, já não é novidade que as poucas disciplinas optativas oferecidas se concentram em enaltecer uma tal ótica obtusa (leia-se, Jessé Souza) que tenta arremessar à lixeira da história todo o cânone do pensamento político brasileiro, aí incluídos Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda ou qualquer outro que veja nas nossas raízes coloniais os fundamentos da nossa Cultura. Como se fosse possível pensar a Cultura, ou a identidade, sem pensar nas raízes profundas de um povo.
Como se fosse possível compreender Minas sem conversar com as nossas avós, naquela tarde de sábado, cheirando a bolo de fubá saindo do forno.
*Diego Vinícius Vieira. Advogado é Mestre em Direito pela UFMG