Marçal se nega, peremptoriamente, a falar em “projetos”: em suas intervenções, sempre desliza para o campo moral, tratando de “aborto”, “maconha”, “terrorismo”, “linguagem neutr@” etc.
O grande governador mineiro Milton Campos dizia, sobre a política: “Brigam as ideias, não os homens”. Mas e quando não há ideias a serem debatidas? Desconfio que seja esse o caso das eleições municipais de 2024, na maioria das cidades brasileiras. É o que explica, creio, a disputa – ou melhor: a briga na lama – pela prefeitura de São Paulo, que pode servir como um modelo em miniatura para que compreendamos as agruras da política nacional, hoje.
Falar no certame eleitoral paulistano é falar, fundamentalmente, no “fenômeno Pablo Marçal”, quer dizer, na meteórica ascensão do “mentor e educador” – que reiteradamente se recusa a ser chamado de “coach” – que ora se encontra empatado com Guilherme Boulos (liderança experiente) e Ricardo Nunes (prefeito da cidade desde 2021) em 1º lugar, em muitas pesquisas de intenção de voto. Independentemente do resultado das urnas, Marçal é – para escândalo de qualquer brasileiro com bom-senso – o grande vencedor do pleito, em virtude da enorme visibilidade que alcançou esse ano (visibilidade que seguramente irá converter em criptomoedas, em um futuro próximo). Mas o quê, na figura de Marçal – digital influencer com milhares de fãs, mas que só se enveredou na política a partir de 2022 – tem seduzido tantos eleitores?
Ver políticos e jornalistas tarimbados tentando debater com Marçal é como assistir ao grande Garry Kasparov (considerado o maior enxadrista de todos os tempos) esforçando-se para jogar xadrez contra um pombo. O pombo derrubará as peças, defecará sobre o tabuleiro, e alçará voo (quando puderem, pesquisem sobre o “complexo do pombo enxadrista”, noção desenvolvida por Scott D. Weitzenhoffer). Que o pombo se jacte de ter vencido o torneio é compreensível, considerando-se as limitações intelectuais do animal. Mas que o público APOSTE NO POMBO, contra Kasparov – aí está um evento que merece ser analisado com atenção.
Ao longo dos anos, o Brasil sofreu um intenso processo de despolitização. Candidatos à direita e à esquerda pareciam servir ao mesmo projeto (neoliberal, frise-se!), com pequenas alterações aqui e acolá. Daí que disputas eleitorais se parecessem mais com entrevistas de emprego que com embates ideológicos: não discutíamos qual era a melhor agenda para o País – Banco Central independente ou subordinado ao Poder Executivo? Livre mercado ou políticas alfandegárias protecionistas?… –, mas qual a figura mais capacitada para gerir uma agenda já definida (definida por banqueiros e oligarcas transnacionais). Essa lógica tecnocrática arrastou-nos para uma profunda crise de representatividade: a maioria dos brasileiros passou a nutrir enorme desconfiança – quando não desprezo! – face a partidos, políticos profissionais, e debates eleitorais, por acreditarem que todos eles, independentemente das bandeiras ideológicas que hasteiam, estão subordinados aos mesmos interesses. As manifestações de junho de 2013 (“contra tudo isso que está aí”) foram um reflexo dessa “perda de fé”, e têm repercussões até hoje.
A plateia torce para o pombo quando já não acredita no jogo – se suspeito que todo enxadrista vence roubando, vibrarei ao ver uma criatura virando o tabuleiro e avacalhando a partida. Candidatos como Pablo Marçal se nutrem da nossa frustração com o modelo sociopolítico vigente – e da nossa incapacidade de firmar novos modelos, mais democráticos. Nos debates eleitorais, Marçal sistematicamente aponta para a natureza farsesca, pantomímica, da política brasileira – não para romper com ela, mas para elevá-la a um grau paroxístico: “Isso aqui não é um jogo pra ver quem tem a melhor proposta, é pra ver quem aguenta mais encheção de saco”. Se todo rei é um palhaço, por que não coroar o bobo da corte – que, ao menos, SABE que o trono é um picadeiro e o palácio é um circo?
Não é à toa que Marçal se refira ao domingo, 6 de outubro, como “dia da vingança”. Emulando o discurso de outros líderes populistas – de Mussolini aos nossos dias –, Marçal vende a ideia de que a pobreza e a falta de alternativas que vivenciamos são culpa, não do rentismo e do capitalismo financeiro, mas de um “consórcio comunista” que teria se apropriado do Estado, e que trabalharia para fabricar “desempregados profissionais” por meio do “assistencialismo” (que desestimularia a “mentalidade de empreendedor” do brasileiro). Num cenário despolitizado, facilmente nos apegamos a soluções morais falsas (teorias da conspiração sobre bilionários comunistas que se articulariam para perverter o espírito dos jovens) para problemas sociais e econômicos genuínos.
A “nova direita” conseguiu, com habilidade, transformar nossa decepção com a democracia representativa em uma mercadoria. Oferecem ao eleitor, não ideais disruptivos, mas uma ESTÉTICA da “disrupção”, convertendo todo anseio por mudança em uma PERFORMANCE (com direito a trios elétricos, dancinhas sincronizadas etc.). Em entrevista, Marçal disse: “Vai todo mundo abrir os olhos para um novo tipo de política”. Trata-se de um palavrório anti-sistema feito sob medida para conservar o sistema. Embora seja um milionário com apoio do empresariado e de vetustos caciques da política paulista, Marçal tenta incutir a ideia de que é apenas um indivíduo contra o establishment, “só com Deus e o povo”, numa campanha “espontânea”, “franca”, boicotada pela “máquina”. Como eu sempre digo: é preciso muito ENSAIO pra parecer espontâneo.
Em reportagem de abril de 2022, a Agência Pública revelou como plataformas de entrega (iFood etc.) financiam empresas de publicidade para que estas boicotem greves e paralisações de entregadores. Criando perfis fake em redes sociais, especialistas em marketing digital disseminam narrativas mentirosas, procurando convencer os trabalhadores de que a exploração de que são vítimas decorre, não das corporações para as quais atuam, mas do “governo comunista”. Os perfis “fake” conversam como se fossem jovens pobres da periferia lutando para “tocar seu trampo” e “crescer na vida” – mas, do outro lado da tela, escondem-se equipes formadas em “Stanford” e domiciliadas na Vila Olímpia, que tomam “latte macchiato” enquanto riem dos entregadores. É essa estratégia de “Marketing 4.0” que está por trás das campanhas eleitorais de figuras populistas, atualmente.
Marçal se nega, peremptoriamente, a falar em “projetos”: em suas intervenções, sempre desliza para o campo moral, tratando de “aborto”, “maconha”, “terrorismo”, “linguagem neutr@” etc. Desencantado com a política, o brasileiro tem, nas últimas décadas, recorrido à religião, “suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma”. Ora, Marçal consegue, com habilidade, mesclar a retórica da autoajuda com o jargão das igrejas neopentecostais – dois produtos fartamente consumidos por nossa classe média baixa depauperada e aflita. O candidato promete “gerar receita dando louvor e glória”, de modo a tirar os paulistanos da “mentalidade de miséria” incitada pelos “comunistas”. Em seu vocabulário, desenvolver políticas públicas é “abençoar a comunidade”.
Um dos aspectos mais cruéis no neoliberalismo é imputar às classes mais baixas a responsabilidade pelo seu infortúnio. Você está desempregado? A culpa é sua! O que te falta não é derrubar a burguesia e se apropriar dos meios de produção, mas abraçar um espírito de investidor. É esse o mantra de muitos “coaches” e pastores – e é o lema que tem guiado a campanha de Marçal. O candidato não propõe (e nem teria capacidade para tanto!) uma reforma nas estruturas político-sociais; o que ele defende é uma “mudança de mentalidade do povo”, que transforme o Brasil numa “nação empreendedora”. A riqueza seria o resultado, não de diferentes paradigmas de desenvolvimento, mas de “valores morais” (cristãos, saliente-se). Marçal usa a sua trajetória pessoal como exemplo: basta uma modificação no “mindset” para que qualquer um fique rico, sarado e… equilibrado (?!). Nas palavras de Marçal: “todo mundo pode TER UM BANCO, todo mundo pode prosperar”. Os planos urbanísticos de Marçal – prédio de 1 quilômetro, teleférico nos subúrbios… – não podem ter, e o próprio candidato o admite, qualquer efeito prático, mas seriam meios de “empoderar” o paulistano, fazendo com que ele se reconheça como “cliente de luxo” da prefeitura.
Num contexto de colapso da democracia institucionalizada, buscamos, desesperadamente, formas novas de nos aproximarmos de nossos representantes, sem ter que passar pelas “mediações” dos sindicatos, dos partidos, dos assessores etc. Nessa conjuntura, digital influencers “nadam de braçada”. Celebridades da internet (como Marçal) são hábeis em gerar engajamento produzindo, em seu público, uma falsa sensação de proximidade, de intimidade: “Na minha vida particular eu mostro tudo”. Muitas pessoas que seguem influenciadores acreditam, piamente, que fazem parte da “família” de seus ídolos – afinal, não é raro que esses “formadores de opinião” interajam com os fãs, curtindo e repostando comentários, oferecendo brindes etc. Por isso Marçal com frequência ironiza a grande mídia – não precisa dela para vender sua imagem. Usa seu tempo na TV, unicamente, para fazer remissão a suas redes sociais, o lugar onde a mágica verdadeiramente acontece. Num mundo em que a política é calcada no ceticismo e no desapontamento, digital influencers oferecem a doce ilusão de uma radical transparência – decisões sobre a cidade poderão ser tomadas por meio de enquetes no Instagram, reuniões importantes serão transmitidas em tempo real através de “lives” no Youtube…
Estamos diante da política pós-política, da eleição reduzida a espetáculo digital, a corrida por “likes”. O esvaziamento ideológico alcançou o fundo do poço (ou teremos descoberto que o poço não tem fundo?), com o ímpeto rebelde e subversivo de 2013 sendo reduzido, 10 anos depois, a um “estilo politicamente incorreto” tão inócuo quanto as esquetes do “Pânico na TV” zoando a Maria Bethânia. Ver Marçal “trollando” outros candidatos – que representariam, em tese, a política “tradicional” – pode incutir um sentimento de desforra, mas não opera nenhuma alteração real. É a subversão que não subverte, que muda tudo para que tudo permaneça como está. Precisamos, urgentemente, abandonar a fantasia, boba, de que a internet é a “nova ágora” (isto é, a nova praça pública, o espaço ideal para a formação de opiniões políticas), um meio de recuperarmos a democracia direta e criarmos laços mais fortes e instantâneos com nossos candidatos. Não há nada de autêntico ou transparente na internet, dominada por conglomerados predatórios. Ou nos repolitizamos, ou seremos devorados por pombos, os verdadeiros donos da praça.
*Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ.