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O direito digital e a LGPD

O direito digital e a LGPD

O exercício da liberdade, desdobrada nos direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988, é garantida aos cidadãos pelo Estado, através das leis que regulam os direitos fundamentais.

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12-07-2024 às 10h:20

Levindo Ramos*

A comissão de juristas nomeada no âmbito do Senado Federal, composta, dentre outros, pelos mineiros Dierle José Coelho Nunes, Flávio Tartuce, João Otávio de Noronha, Marcelo de Oliveira Milagres e Moacyr Lobato de Campos Filho, apresentou a minuta final do anteprojeto de reforma do Código Civil, que contempla um livro específico sobre direito digital, confiando, no âmbito privado, proteção e segurança jurídicas para as relações desenvolvidas no ambiente digital. Entre os fundamentos do chamado direito civil digital está a proteção dos dados pessoais.

Antes de introduzir propriamente o tema desta coluna, compartilho a posição que defendo há alguns anos em artigos publicados, fruto do debate na área da filosofia do Direito, sobre a importância do estabelecimento de relações éticas no Estado de Direito. O exercício da liberdade, desdobrada nos direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988, é garantida aos cidadãos pelo Estado, através das leis que regulam os direitos fundamentais.

Pensando assim, podemos definir juridicamente a justiça como a efetivação desses direitos fundamentais pelos cidadãos no Estado de Direito, ou seja, justo é aquele Estado que garanta aos seus cidadãos a efetivação dos direitos fundamentais e a Constituição é esse projeto de Estado garantidor desses direitos.

As relações na sociedade civil, tal e qual entende Joaquim Carlos Salgado a partir de Hegel, se estabelecem para a satisfação dos interesses particulares. É no Estado, através do Direito, que essas relações ocorrem contemplando valores morais, aqueles mais importantes para a sociedade que são transformados em direitos fundamentais e tornados constitucionais.

Percebam que as relações se tornam éticas no Estado e a partir do Direito. Assim, também, deve ocorrer com as tecnologias que se apresentam contemporaneamente. Essa base filosófica é o fundamento que percorre minha análise sobre a importância da regulamentação das novas tecnologias pelo Estado.

Ao contrário, como temos visto, empresas de tecnologia se eximem das responsabilidades pelo conteúdo disseminado, como permitido, atualmente, pela legislação no Brasil, mas controlam o perfil de pessoas que acessam aquele conteúdo, a partir dos interesses pessoais verificados com algoritmos, enquanto rolam as telas de seus celulares. 

As relações jurídicas, da mera compra e venda às desenvolvidas a partir das mais sofisticadas arquiteturas de inteligência artificial, passam, com o projeto de reforma do Código Civil, a serem regulamentadas pelo direito brasileiro.

No projeto, está refletida essa preocupação de um movimento maior de constitucionalização do direito – ou seja, de trazer para os códigos e legislações ordinárias os princípios constitucionais –, em que a constituição passa a ser o centro efetivo de um sistema, que irradia sua influência concêntrica para todos os ramos do direito, como uma pedra que cai em um lago – uma ligação maior, orgânica e mais complexa do que a ideia monolítica de topo de uma pirâmide.

Percebemos esse movimento, no projeto do Código Civil, a partir do destaque que se dá aos direitos fundamentais garantidos nas relações jurídicas estabelecidas no ambiente digital, que é definido como o espaço virtual interconectado por meio da internet, compreendendo as diversas tecnologias interativas que permitam a criação, o armazenamento, a transmissão e a recepção de dados e informações.

Ao estabelecer, no conceito de ambiente digital, o tratamento de dados, dentre eles estão os dados pessoais e os dados pessoais sensíveis – aquela informação relacionada à pessoa identificável ou identificada – regulados pela Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD. São esses dados pessoais que passam a ter sua regulação complementada pelas regras gerais de direito privado, como um desdobramento dos direitos fundamentais.

Nesse contexto, o texto do projeto de reforma do Código Civil salvaguarda a dignidade humana, com destaque aos direitos de personalidade, trazendo como fundamentos do direito civil digital, dentre outros, o efetivo respeito aos direitos humanos, ao livre desenvolvimento da personalidade e dignidade das pessoas, ao exercício da cidadania, além do respeito à privacidade, à liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião.

O projeto também se ocupou de elencar os direitos das pessoas, no ambiente digital, reforçando os direitos do titular de dados pessoais e pessoais sensíveis, além de garantir o reconhecimento de sua identidade, presença e liberdade no ambiente digital; a proteção de dados e informações pessoais, garantido o direito de exclusão dos dados pessoais tratados sem finalidade específica.

Além disso, o projeto de Código Civil avança para os chamados neuro-direitos, parte da personalidade, que visam preservar a privacidade mental, a identidade pessoal, o livre arbítrio, o acesso justo à ampliação ou melhoria cerebral, a integridade mental e a proteção contra vieses.

Esses neuro-direitos protegem os chamados dados neurais ou cerebrais, ou seja, informações do sistema nervoso central obtidas a partir da interação da pessoa com o computador, isto é, com as neurotecnologias. Essas informações são dados pessoais, pois identificam ou tornam identificáveis a pessoa, como define a LGPD. Mais que isso, a manipulação desses dados pode interferir no livre-arbítrio, de forma a exigir um tratamento especial do direito, sendo justificado classificá-los como dados pessoais sensíveis. Portanto, merecem a proteção jurídica, no projeto do Código Civil, equivalente aos direitos de personalidade, garantida a privacidade mental, proibida a venda ou transferência comercial; e o direito à integridade mental, com a não manipulação da atividade mental por neurotecnologias.

De um modo geral, o projeto de reforma do Código Civil avança em boa medida na aplicação dos direitos fundamentais à nova realidade que se apresenta no ambiente digital, prevendo o direito civil digital como um livro especial, que se debruça sobre importantes garantias constitucionais às novas relações jurídicas estabelecidas a partir das novas tecnologias. Dados os desafios que temos experimentado e a necessidade de regulamentação dessas relações, para que se estabeleçam de forma ética, o projeto aponta para importantes parâmetros legais dos direitos digitais.

* Levindo Ramos é Mestre e Doutor em Direito pela UFMG, Professor e Advogado, Consultor na área de Governança Algorítmica e LGPD. Consultor Jurídico da Soamar-BH.

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