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O Acordo Mercosul-União Europeia e o desacordo venezuelano

O Acordo Mercosul-União Europeia e o desacordo venezuelano

A chamada “cláusula democrática” surge com imensa força no curso desses debates, e vem sendo estudada em trabalhos de grande fôlego, como o do diplomata Otávio Augusto Cançado Trindade.

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07-08-2024 às 09h:10

José Luiz Borges Horta*

Desde o milênio passado, dois dos mais significativos blocos econômicos, mas talvez também culturais e quem sabe um dia políticos, tentam associar-se em um acordo comercial que permita criar um mercado comum envolvendo um quarto de todo o comércio internacional mundial.

Durante estas décadas, as chancelarias dos países integrantes de ambas as uniões passaram por inúmeras dificuldades e as foram buscando dirimir, ora enfrentando governos mais protecionistas, ora enfrentando governos, mas intervencionistas até mesmo na política interna dos outros países.

Durante esse percurso, tanto para a Europa quanto para a América do Sul, as questões meramente econômicas foram sendo confrontadas por questões de ordem social, política e de outras esferas, que nos estimulam a pensar o Direito da Integração em bases mais próximas do Direito Constitucional que simplesmente do Direito das Organizações Internacionais.

Nesse sentido, a chamada “cláusula democrática” surge com imensa força no curso desses debates, e vem sendo estudada em trabalhos de grande fôlego, como o do diplomata Otávio Augusto Cançado Trindade.

No Mercosul, a cláusula democrática foi reivindicada para suspender o Paraguai do bloco, em razão das sempre fantasiadas críticas aos processos de “impeachment”, no caso, de seu presidente Fernando Lugo — mais conhecido por suas aventuras heteroeróticas e pelos rebentos delas nascidos, ainda que Dom Lugo fosse bispo da Igreja Católica — e o afastamento do Paraguai viabilizou o ingresso da Venezuela no Mercosul, ao qual o Paraguai então se opunha.

Como um “boomerang”, a cláusula democrática voltará agora, e com força transatlântica: Argentina, Paraguai e Uruguai não reconhecem a “treeleição” de Nicolas Maduro na Venezuela. À luz de todos os dados e do vendaval de indícios, a Venezuela não atravessou um processo democrático de eleições, e os três países não parecem dispostos a transigir neste ponto, quase que desde logo anunciando nas entrelinhas a suspensão da Venezuela do Mercosul.

Se não pelos três países do Mercosul, as restrições que vinham sendo apresentadas à homologação do acordo entre o Mercosul e a União Europeia, quase sempre situadas em questões referentes a tentativas de impedir o Brasil de acessar o seu próprio patrimônio de riquezas naturais e minerais, agora ganham um argumento incontornável na incapacidade venezuelana de sequer simular procedimentos democráticos na construção de sua hierarquia de poder: sendo o Mercosul composto por cinco países e um deles padecendo de problemas tão óbvios na consolidação de sua democracia, bolivariana ou não, aí é que a União Europeia jamais firmará, de “jura et de facto”, nosso tratado de livre comércio.

Por isso, o papel do Brasil, da Colômbia e do México sobreleva imensamente. Os três países, como a mídia os trata, são governados pelas suas respectivas forças de esquerda, e, portanto, simpáticas ao bolivarianismo chavista e até mesmo ao delirante Maduro, que até mesmo vem agradecendo ao apoio dos três países.

É curioso registrar que os ministros de Relações Exteriores dos três países são, todos, muito bem preparados, ainda que com origens intelectuais distintas. A atual chanceler mexicana, Alicia Isabel Adriana Bárcena Ibarra, é bióloga de formação e já está designada para assumir o Ministério de Meio Ambiente e Recursos Naturais do México a partir de outubro, no novo governo já eleito, tendo já atuado até mesmo como chefe de gabinete de Kofi Annan na ONU. O chanceler colombiano, Luís Gilberto Murillo Urrutia, engenheiro formado na Rússia e político “afrocolombiano” com experiência em mandatos, foi ministro do Meio Ambiente na mesma Colômbia. Por sua vez, o embaixador e chanceler Mauro Vieira, jurista formado pela Universidade Federal Fluminense, é diplomata de vasta experiência em postos de muita importância estratégica. Caberá aos três, ao que se anuncia, buscar uma alternativa, uma saída, para os impasses políticos venezuelanos.

São três esses impasses: primeiro, uma Revolução Bolivariana, com reacionários que certamente a querem derrubar (como estão fazendo com estátuas de Hugo Chávez derrubadas para consumo midiático, como antes se fez com estátuas de Lênin, ou de Sadam Hussein, e hoje os desvairados “woke” querem fazer “erga omnes”); segundo, um líder frágil e sem apoio popular, mas com aparente hegemonia sobre o aparato institucional civil e militar; terceiro, um presidente eleito pelo voto direto popular e que aparenta ter quase 70% do apoio do eleitorado.

Que saída pode haver? A pergunta é absolutamente retórica. Primeiro, porque em meio à “revolução geopolítica” pela qual o planeta passa, há um tal equilíbrio de forças que poderia dar ao Governo da Venezuela sustentação inclusive bélica para se manter, o que talvez torne “saída” uma alternativa meramente imaginária — salvo do Mercosul, onde inevitavelmente a cláusula democrática fará suspensa a Venezuela e, de toda forma, dissolve de vez a possibilidade de um acordo de livre comércio do Mercosul com a União Europeia.

É retórica também nossa pergunta, por ser a saída rigorosamente óbvia: para qualquer crise política institucional, profunda, na qual se busque a democracia, a saída é uma e apenas uma, e todos nós, que possuímos um mínimo do “realismo histórico” (Rafael Tallarico) com que Henry Kissinger estabeleceu o predomínio norte-americano nas Relações Exteriores sabemos: a saída é sempre e unicamente o Parlamentarismo.

A “troika” de chanceleres só pode levar à Venezuela a alternativa parlamentarista: a) Maduro na chefia de Estado e Edmundo González Urrutia na chefia de governo (alternativa frágil, já que o parlamento é hoje controlado por chavistas);  b) Edmundo González Urrutia na chefia Estado e um chavista na chefia de governo (alternativa razoável, ainda que contraditória, já que o Estado, bolivariano, fica em mãos de não bolivarianos, enquanto o governo popular segue em mãos bolivarianas); e c) entregar a chefia de Estado a outro chavista de solidez, quer político quer militar, a chefia de governo interinamente a González Urrutia e a convocação imediata de um novo Parlamento, que elegeria o primeiro-ministro após novas eleições já com o novo Presidente, fruto da negociação entre governo e oposição mediada pela “troika” democrática construída pelo Brasil, pela Colômbia e pelo México.

No Parlamentarismo, é possível equacionar toda a pluralidade existente em uma comunidade política, assegurando espaços para as minorias ideológicas e impedindo que a comunidade internacional construa restrições ou sanções quer ao sofrido povo venezuelano quer aos povos a eles associados. Fora do Parlamentarismo, não há como fazer caber em um mesmo jogo político opositores tão figadais a ponto de se matarem pelas ruas ou de cometerem gestos patentemente antidemocráticos para impedirem os adversários de acederem a funções de poder.

Não há outra alternativa. Ou a República Bolivariana da Venezuela se parlamentariza ou terá de deixar o Mercosul. Nas duas opções, como Hegel nos ensina, as astúcias da razão estarão se movimentando, quer para fazer avançar a democracia na América do Sul, trazendo a democracia parlamentar para o seio sul-americano, quer para promover alterações estruturais no Mercosul — que pode, a partir da suspensão da Venezuela, avançar na direção de negociar com o Chile de Gabriel Boric (o presidente de esquerda que não reconheceu a vitória de Maduro) a mudança do status de país-associado a país-membro do Chile no Mercosul, o que nos permitiria tornar o Mercosul no mercado comum do Cone Sul e tornar o Mercosul um bloco potente e transoceânico, que permita o fácil trânsito de pessoas e mercadorias do Oceano Atlântico ao Oceano Pacífico, e vice-versa, por meio de seu território. Um avanço geopolítico regional sem precedentes!

O pior de todos os cenários é ver a Venezuela “argentinizar-se” e lançar-se a uma guerra perdida (?) contra os britânicos, trazendo para as Américas o cenário de desolação e morte que ronda a Eurásia, o Oriente Médio e o Pacífico — e guerra não combina com a América do Sul, como sabemos desde a dolorosa experiência, ainda muito sofrida, da Guerra do Paraguai.

*José Luiz Borges Horta, 53, é Professor Titular de Teoria do Estado na Universidade Federal de Minas Gerais e professor visitante sênior PrInt-CAPES na Facultat de Filosofia da Universitat de Barcelona. Pesquisador no Centro de Excelência Jean Monnet em Estudos Europeus da UFMG. Contato: zeluiz@ufmg.br

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