
CRÉDITOS: Divulgação
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14-03-2025 às 10h17
Henrique German*
Em minhas andanças pelo interior de Minas, nos anos que vivi fora de Belo Horizonte, dentre outras tantas vivências, experimentei, também, momentos dolorosos, nos quais, em mais de uma ocasião, tive que prestar solidariedade ao próximo, no mais funesto dos ambientes, qual seja, o dos tristes velórios.
De fato, sempre foi hábito meu, que conservo ainda hoje, o de visitar amigos, conhecidos ou seus familiares, nas oportunidades mais difíceis que a vida nos costuma apresentar, como, naturalmente, nas hipóteses de doença e morte. Realmente, havendo possibilidade, jamais me furtei de comparecer a hospitais, velórios e sepultamentos, além, é claro, de fazer visitas de condolências nas casas dos mortos, prestando os meus respeitos a viúvas e órfãos. Infelizmente, nos últimos tempos, em razão da perda da visão, fiquei muito limitado, também, nesse particular.
Ressalto, porém, que, mesmo nessas tristes e trágicas situações, houve momentos interessantes, diferentes, para não dizer inusitados, ou até engraçados, apesar dos pesares. Relatarei dois ou três deles aqui, tendo um ocorrido na Zona da Mata e os outros, no Alto Paranaíba.
Certa fria madrugada, tanto quanto podem ser geladas as madrugadas de inverno na Zona da Mata de Minas, estava eu a um canto, sentado em uma cadeira dura, de madeira, em silêncio, a observar a família de meu conhecido, que o pranteava, baixinho, ao redor do caixão colocado sobre a mesa de jantar, na sala da casa. Em verdade, é ainda bastante comum vermos os velórios domésticos, em várias pequenas cidades, que não contam com esse tipo de serviço oferecido nem pela prefeitura nem por empresa privada.
Os amigos do falecido chegavam a todo instante, enchendo a sala, disputando espaço com parentes e conhecidos da família, espalhando-se, para além do centro principal, em torno do defunto, às adjacências mais óbvias, representadas pelos cômodos contíguos, até atingirem, por fim, a área do vasto quintal às escuras, atrás da cozinha, onde se preparavam, continuamente, formadas e mais formadas de broas e pães de queijo e faziam-se tonéis de café forte.
A certa altura, notei que, dos fundos, dos escuros do quintal, vinham risadas, som de gritos, conversas altas e música, com canto e violão. É bom sublinhar que não era apenas o café que circulava em forma líquida, mas também muita cachaça, certamente, para espantar o frio intenso. Fui ao quintal eu mesmo, com o casaco abotoado tal qual o do morto, e, ali, pude verificar a presença de dezenas de homens que bebiam e contavam anedotas, riam alto e cantavam, embriagados, empanturrando-se de pão de queijo e broa de milho, sendo que alguns até dançavam com pares imaginários. Que festa!
Quase me esquecendo de que se tratava de um velório, tangido pela friagem, voltei ao interior da casa, com a intenção de despedir-me da viúva e dos filhos, porque pretendia retirar-me antes do cortejo ao cemitério, que se daria logo ao amanhecer. Enquanto esperava a melhor oportunidade para avizinhar-me do caixão, vi que, à porta da frente, assomou um vulto imenso, o qual caminhava devagar, fazendo de sua entrada um acontecimento demoradíssimo.
Quando a luz incidiu sobre o homem, ouvi alguém dizer que era o senhor fulano, vizinho, morador da casa ao lado, o qual, somente àquelas horas, eram por volta das quatro, acordara com o barulho e viera dar os sentimentos à família enlutada. Ele vinha arrastando chinelos de couro, que coutavam os dedos, vestindo um pijama listrado comprido, afianelado, com grossas faixas verticais verdes, e uma espécie de robe sobre os ombros. Os cabelos do homem estavam desgrenhados, a barba, por fazer e os olhos, empapados. Era perceptível que, conforme deixara o leito, viera, sem maiores preparativos ou preocupações.
Ele se achegou ao defunto, sem cumprimentar ninguém, parou à altura do círio que bruxuleava à cabeceira do cadáver e, apalpando o bolso do robe, dele retirou um cigarro amassado, o qual acendeu na vela mortuária, inclinando-se, ligeiramente, para tanto. Após duas ou três bajoradas sobre o féretro, arrastou-se à viúva e lhe apertou a mão, pondo-se, em seguida, a caminho da própria cama, presumo.
A aparição insólita daquele vizinho me impressionou tanto que não fui embora; quando dei por mim, o dia já raiava, e acabei seguindo ao cemitério, com a boca cheia de broa de milho.
Em uma outra madrugada fria, com muitos anos e quilômetros de distância da anterior, estava eu, novamente, em um velório de certo conhecido, parente de um funcionário do Banco do Brasil, que era amigo meu.
Fazia um frio úmido, com neblina, o que dava à noite um ar de mistério e tristeza. A cidade em questão, mais adiantada, já possuía velório privado, que a família contratara, o qual contava com cadeiras estofadas para os presentes e, também, oferecia, a um canto, uma mesa de café com bolinhos.
Tudo ia bem, como podem andar bem tais situações, em si mesmas, desagradáveis. Eu chegara mais cedo e, embora estivesse lá há um bom tempo, ainda não vira o meu amigo, que desejava cumprimentar. As horas voavam, e eu já me decidira a partir, mesmo sem me encontrar com o amigo bancário, quando ele, de repente, apareceu à porta do velório. Levantei-me para ir ter com ele, porém notei que ele entrava cambaleante, trocando as pernas, de olhos injetados, grave e visivelmente alcoolizado.
Fiquei a observá-lo enquanto ele se aproximava do caixão; quando chegou bem perto, com dificuldade, ele se apoiou à beirada da caixa de madeira, olhando para baixo, como que a fitar o morto. Ele se deixou ficar ali, parado, por alguns momentos, sem dizer palavra.
De repente, o meu amigo sacudiu o corpo, tal qual tivesse sido atingido por bastão invisível e, apoiado como estava, com o rosto sempre baixo, vomitou sobre o cadáver um vômito imenso, de cachoeira, típico de bêbado depravado e porco.
Diante do estupor geral e do evidente desgosto da família, esgueirei-me para fora, para a noite, feliz por poder ocultar-me na neblina espessa.
Lembro-me, ainda, de outro velório extraordinário ou, melhor dizendo, no qual ocorreu algo, realmente, incomum e inesperado.
Dessa feita, era dia, o sol brilhava quente e bonito, iluminando o céu de um azul belíssimo, límpido e claro. Cheguei ao velório após o almoço, porque o enterro deveria sair às quatro horas da tarde, da loja maçônica na qual era realizada a vigília.
O requintado salão da loja tinha, ao centro, uma armação de metal, sobre a qual repousava o caixão, ladeado este, nos quatro vértices, por quatro homens de pé, envergando, cada um, uma capa preta e um espadim, o qual seguravam, se bem me recordo, como que a apresentarem armas, à moda das forças armadas. Aqueles indivíduos de capa, ao que me pareceu, montavam guarda, em sinal de respeito ao morto. A mim, que nada conheço das cerimônias dessas lojas, causou-me boa impressão plástica a presença dos sentinelas.
O tempo correu depressa e, quando consegui cumprimentar a filha do defunto, a qual trabalhava como funcionária do fórum local, já era a hora de iniciar-se o cortejo fúnebre, a ser feito a pé, da loja maçônica ao cemitério. O trajeto era relativamente curto, não maior que meia dúzia de quarteirões.
Começou a triste procissão, com o morto à frente, carregado pelos homens de preto, logo seguidos, de perto, pela família, por amigos e conhecidos e por gente da cidade que, simplesmente, não tinha nada melhor para fazer naquele momento. Eu, discreto, caminhava à esquerda dos familiares, morrendo de calor, por causa do termo quente que vestia, porque pretendia, apenas chegasse ao portão do campo santo, desviar-me para o fórum, a duas quadras de distância.
Quando viramos a derradeira esquina, na rua que desembocaria no portão do cemitério, mal dados alguns poucos passos, um dos carregadores desabou, assustando os demais, que largaram o caixão no asfalto, danificando-lhe o fundo. Com os gritos e o choro a subirem de volume, a cada instante, alguém correu a acudir aquele que caíra, como se fosse um coco maduro. Para espanto de todos, estava morto, sofrera um infarto fulminante, conforme se verificou mais tarde.
O caixão foi apanhado por novas mãos, inclusive, pelas minhas, que o recolhemos com muito cuidado, com receio de o fundo soltar-se, o que, por fortuna, não aconteceu.
O outro morto, coitado, foi velado naquela mesma noite, no salão no qual, horas antes, montara guarda ao amigo. A esse segundo velório, eu não compareci.
*Henrique German é escritor