22-12-2024 às 10h10
Marcelo Galuppo¹
É uma experiência transformadora chamar um mendigo por seu próprio nome (prefiro falar mendigo, e não alguém da população de rua, que poderia parecer politicamente mais correto, porque nem todos os que estão nas ruas pedem por alimento, mas é destes que estou falando). A primeira vez que o fiz foi com Bernardo, um homem de uns 55 anos, apesar de parecer ter bem mais, negro, que vaga pelas imediações da rua em que moro, sempre de calças e camisa compridas. Ele se identificou assustado, disse-me seu nome, estranhando a pergunta, e dei-lhe R$ 10,00, dizendo-lhe “obrigado”. Saiu naturalmente, não foi algo pensado. Só depois lembrei-me do conceito judaico de Tzedaká, a caridade, que os rabinos preferem chamar de justiça. Segundo o judaísmo, é quem precisa de nossa assistência que nos presta um favor, e não nós a eles: eles são a oportunidade que Deus nos dá para cumprirmos um dever e, ao fazê-lo, nós retomamos nossa humanidade, que tende a se perder na insensibilidade a que o cotidiano nos induz.
Compaixão, por sua vez, vem do latim compatio e, mais remotamente, do termo grego páthos, uma palavra que explica muita coisa. Explica porque choramos quando assistimos a uma história comovente no cinema, mas também porque choramos quando descascamos uma cebola; explica porque chamamos de patética uma sonata de Beethoven, mas também uma pessoa que faz algo digno de sentirmos dó; explica porque chamamos de paciente tanto quem sofre de uma doença quanto quem sabe esperar; explica porque paixão é uma palavra que descreve tanto a euforia de quem está enamorado quanto o profundo sofrimento de alguém (como na Paixão de Cristo).
O substantivo grego páthos e o verbo que lhe está ligado, páscho, são palavras de muitos significados: páscho é experimentar algo que vem de fora, e que pode ser bom, mas que geralmente é tido como um mal, e também é ser castigado ou ser desfavorecido pelos homens ou pela divindade; páthos é algo que se experimenta, e ainda a má sorte, a derrota, a doença, mas também o ânimo, a disposição, o humor, o sentimento, o impulso. As duas palavras gregas, o substantivo e o verbo (e aquelas que delas derivam em português), têm em si a noção de movimento, de mudança brusca, de transformação operada por algo externo àquilo que é transformado, por algo que está fora de nós (ou fora daquilo que podemos controlar em nós) e que transforma nossa vida, ainda que momentaneamente. Mas páscho (e o verbo latino compasco)tem também o sentido de conduzir o gado ao campo para alimentá-lo (e daí vem nosso verbo apascentar e o substantivo pasto). Sempre que encontro Bernardo, sinto compaixão, e sou levado a alimentá-lo, não porque ele seja gado, mas porque, afinal de contas, a existência de todos nós é cheia de dores, e pode melhorar, ainda que só um pouquinho, se alguém fizer algo.
Muitos pensam ser terrível a presença de moradores de rua perto de suas casas: eles infestam o local, tornam tudo insalubre, sujo, colocam em risco a segurança que a cidade finge nos garantir. Eu também acho terrível encontrar-me com eles, mas não pela mesma razão: eles lembram-me que o sistema em que vivemos é injusto, mas também, e isso é o pior, que sou uma engrenagem desse sistema. Encontrar-me com Bernardo desperta em mim compaixão, leva-me tanto a sentir sua dor quanto a agir para atenuá-la, alimentando-o, ajuda-me a tomar posse de minha humanidade. Vejo-me em Bernardo toda vez que me encontro com ele. E ele também me lembra que o Rei dos Reis não nasceu em um palácio, mas em uma manjedoura, porque não havia lugar para ele nas cercanias de Jerusalém. Desde a primeira vez que perguntei a Bernardo seu nome, ele sempre sorri para mim quando passo por ele. Ajudo-o sempre que posso. Ele me ajuda bem mais do que eu a ele.
[1] Marcelo Galuppo é doutor em Filosofia do Direito e professor da PUC Minas e da UFMG. Ele é autor, dentre outros, de #Um dia sem reclamar, de 2020, #Um dia sem odiar, de 2024, ambos em coautoria com Davi Lago, e Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, de 2024, todos pela Editora Citadel. Ele participa das redes sociais como Prof. Marcelo Galuppo.