
No filme “Homem com H”, não é feita nenhuma menção às constantes mudanças de estado que fizeram parte da infância de Ney Matogrosso, acompanhando as transferências do pai, algo pouco comum atualmente no caso de suboficiais. A casa da infância do cantor também aparenta ter sido a mesma. CRÉDITOS: Thiago Piccoli / Flickr)
03-07-2025 às 09h00
Ana Penido*
Filho de militar e criado sob a rigidez das Forças Armadas, Ney Matogrosso encontrou na disciplina dos quartéis algumas das ferramentas que moldariam sua trajetória artística. O documentário Homem com H, que retrata a vida do cantor, revela uma faceta pouco conhecida do artista: sua origem na chamada “família militar” e o breve período em que serviu à Aeronáutica, no final dos anos 1950.
No Brasil profundo, onde festas juninas exaltam santos populares e tradições, é comum ouvir que “o quartel transforma meninos em homens”. Essa visão, fortemente marcada por estereótipos de masculinidade, ainda ecoa frases como “foi no quartel que meu filho virou homem”. No entanto, para Ney, a experiência militar foi mais complexa – e surpreendentemente libertadora.
Nascido em um lar marcado pela presença do pai, o pracinha da Força Expedicionária Brasileira (FEB) Antônio Mattogrosso Pereira, Ney conviveu desde cedo com a hierarquia, o rigor e a itinerância típicos da vida militar. O pai combateu na 2ª Guerra Mundial, serviu na recém-criada Força Aérea Brasileira e se aposentou como tenente, colecionando medalhas nacionais e estrangeiras.
O documentário não enfatiza as constantes mudanças de cidade que Ney vivenciou na infância, acompanhando as transferências do pai – uma experiência comum entre filhos de militares. Ainda assim, o ambiente de regras, exigências e disciplina marcou profundamente sua formação. Em entrevistas, o artista revela que a relação com o pai foi pautada por medo, e não respeito, e que as agressões físicas foram frequentes.
Apesar disso, Ney também serviu à Aeronáutica, no Rio de Janeiro, em 1959. Segundo o próprio cantor, a experiência não foi traumática. Pelo contrário: adaptou-se bem ao ambiente militar, justamente por já estar habituado a ele. E mais do que isso, encontrou ali algo que não tinha em casa – solidariedade entre os pares. Entre os colegas recrutas, formou laços que suavizaram a rigidez da caserna e até viveu um romance clandestino, em meio a uma atmosfera que, embora vigiada, permitia algum respiro para experimentações afetivas e sexuais.
Essa ambiguidade – o quartel como espaço de repressão e, ao mesmo tempo, de descoberta – exige uma leitura cuidadosa. O Código Penal Militar da época, por exemplo, ainda criminalizava práticas homossexuais em áreas sob administração das Forças Armadas, com penas previstas para “atos libidinosos, homossexuais ou não”. Esses trechos só foram retirados da legislação em 2015, por decisão do Supremo Tribunal Federal.
Hoje, ainda que não haja proibição formal à presença de pessoas LGBTQIA+ nas Forças Armadas brasileiras, persistem relatos de discriminação, invisibilidade e pressões informais. Casos envolvendo exclusões, deslocamentos forçados e dificuldades de acesso a direitos têm ganhado espaço na Justiça, em busca de reparações e reconhecimento. Nesse contexto, o relato de Ney, que viu no quartel um espaço de autoafirmação, contrasta com a experiência de muitos.
Mas talvez o maior legado da vivência militar para Ney Matogrosso tenha sido o domínio sobre sua própria imagem. A convivência obrigatória, a ausência de privacidade e os rituais coletivos, como os banhos em grupo e os exercícios físicos diários, prepararam o artista para se expor no palco sem reservas. Durante os anos com os Secos & Molhados, em que se apresentava quase nu, a segurança performática que exibia talvez tenha nascido naquele ambiente austero e controlado.
No filme e em sua trajetória, Ney aparece como alguém que aprendeu a impor limites e a cuidar de si e dos outros. A responsabilidade afetiva demonstrada com parceiros e amigos – como Cazuza, a quem acompanhou até o fim da vida – revela uma sensibilidade rara. Em tempos de HIV e estigmas, Ney escolheu o caminho do afeto, da solidariedade e da coragem, valores que raramente associamos à ideia tradicional de “homem com H”.
A masculinidade que Ney encarna não se constrói sobre força bruta, violência ou repressão. É uma masculinidade que desafia padrões, que resiste, que ama e que cuida. Talvez por isso faltem, hoje, homens com H: não os que morrem em guerras ou brilham como heróis de ação, mas os que ousam amar e viver com inteireza, mesmo em ambientes hostis.
Se, como disse o artista, o quartel lhe ensinou a lidar com o mundo, foi também no palco que ele o transformou. E num tempo em que ideologias autoritárias ressurgem e discursos de ódio voltam a ganhar força, Ney Matogrosso nos lembra que rebeldia também pode ser ternura, e que coragem é ser quem se é – mesmo quando o mundo manda calar.
Ana Penido, Especial para Opera Mundi, Rio de Janeiro (RJ)