
Felicidade pode vir de várias formas e sabores - créditos: divulgação
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29-03-2025 às 09h29
Sérgio Augusto Vicente (*)
O clima no escritório da empresa não era bom. Fazia meses que os lucros iam de mal a pior. Corte de gastos, demissões e um absurdo sentimento de insegurança pairava no ar. Os amigos de outrora já não eram os mesmos. Os tradicionais almoços corporativos no restaurante da esquina nem sequer eram lembrados. Carlos mal conseguia esconder as olheiras de preocupação com o iminente risco de desemprego. Em pouco tempo, as noites insones o fizeram envelhecer dez anos. Mais uma extenuante reunião se encerrara. Cabeça latejando, visão turva e muitas, muitas perturbações. Na rua, o sol escaldante refletia na calçada e lhe fazia arder os olhos feito brasa. Seu corpo, apesar de habituado aos longos anos de aprisionamento naquele terno grafite, “slim”, comprado com as fartas migalhas dos tempos das vacas gordas, gritava por um refresco. Ainda assim, era possível se sentir mais confortável do lado de fora do escritório. Na sala, o ar condicionado estragara há dias, sem que nenhuma providência fosse tomada para consertá-lo. Contenção de gastos!
Carlos não tinha fome. Ou tinha, sei lá! O restaurante da esquina pesou no bolso. A marmita era por demais proletária, degradante. O troco no bolso tinha um destino certo: a compra do bilhete de loteria, a única esperança que tinha para se agarrar.
Calor, barulho na rua, transeuntes correndo contra o tempo. Carlos, porém, só queria parar o tempo. A semana começava sem nenhuma boa expectativa de como terminaria. O coração pulsava forte. Por um instante, mirou a sorveteria ao lado. Permitiu-se descansar os olhos naquela decoração multicor com cheiro e sabor de infância.
O homem não hesitou. Adentrou o espaço e pediu o mais colorido dos sorvetes. Daquele repleto de jujubas e confetes. Fez o pedido e se sentou à mesa. Ao lado, uma mulher, diarista, reclamava com a amiga sobre o atraso no salário. Um menino, inquieto, falava alto e tentava interromper a conversa de ambas. Grunhia e apontava o dedo insistentemente para o menu. A mãe não interagia. O menino se irritava e se revoltava. Até que o cansaço lhe dominou e se sentou, resignado.
Sentou-se em frente ao Carlos e fitou-lhe os olhos, que refletiam como dois pequenos espelhos o colorido do sorvete no pote. O olhar adocicado de criança que clamava por um sorvete, por um instante, constrangeu e comoveu o adulto, que não hesitou em interromper a conversa da mãe do garoto para perguntar se podia lhe pagar um sorvete.
“Moço, se o senhor puder, fico agradecida.”
A alegria com que o garoto devorava cada colherada aqueceu o coração de Carlos, após aquele rápido refrigério. O menino e o homem se abraçaram e se chamaram de amigos.
No caixa, a conta não fechou. O dinheiro de bêbado embolado no bolso esquerdo do paletó mal dava para pagar o próprio sorvete. “A despesa era maior do que a receita” – sentença que mais ouvia nos últimos tempos. Com uma passageira sensação de bem-estar, enfiou a mão direita no bolso da calça, sacou o cartão e pronunciou o mais feliz e satisfatório “no crédito, por favor!”.
Na porta da sorveteria, o menino lhe encarava com olhos de gratidão. Mas Carlos precisava seguir. A obrigação lhe chamava. Dobrou a esquina e deu o último adeus. Seguiu para o escritório. Lá, um monstro lhe esperava com os olhos arregalados, os dentes arreganhados, afiados, vorazes e impiedosos, expelindo labaredas pelas ventas. Esse monstro, pessoal, é o mercado financeiro!
(*) Sérgio Augusto Vicente é professor de História e historiador. Graduado, Mestre e Doutor em história pelo PPGHIH/UFJF. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora (MG)