A igualdade de todos está se enfraquecendo, logo ela que já foi bandeira tão importante há poucos séculos, durante a Revolução Francesa e a Revolução Americana.
30-11-2024 às 10h30
Rogério Reis Devisate*
Catumba é palavra de origem africana, sendo “situação embaraçosa” um dos seus significados, bem adequado para o que temos visto e passado, em parte porque ninguém entende de nada quando todo mundo acha que entende de tudo!
Parece adequado que opiniões de leigos pareçam ter mais valor e ser mais replicadas do que a dos especialistas? Algo está fora do lugar, também quando mensagens com poucas palavras têm o pretensioso propósito de explicar coisas complexas.
A verdade já deixou de ser tão importante, no tempo em que as mentiras também não chamam tanto a atenção – isso significa que estamos buscando uma média que não satisfaz e não nos permite refletir e progredir. Por outro lado, jamais se abusou tanto das palavras, deturpando-lhes os conceitos, para servir a qualquer causa ou ocultar a verdade. Parece que não somos mais o que fomos, quando tanto derretem valores que já foram fortes na sociedade. Isso nos dá, também, a sensação de que as trocas periódicas na política não têm modificado essencialmente o nosso cotidiano e, rodando pelas cidades, é fácil ver nas casas os mesmos tijolos aparentes e sem emboço, o trânsito engarrafado nos mesmos locais, as enchentes frequentes que causam os problemas de sempre, o crime se consolidando, etc.
Numa metáfora, estamos vendados e na esquina de movimentada avenida, de mão dupla. Vamos atravessá-la, arriscando os nossos passos em meio aos carros que teremos que driblar. O campo de batalha, contudo, não está lá fora e sim dentro de nós, que estamos cada vez mais expostos e dependentes dos outros, a ponto de alguns não emitirem as suas reais opiniões para não correr o risco de ser cancelados.
A igualdade de todos está se enfraquecendo, logo ela que já foi bandeira tão importante há poucos séculos, durante a Revolução Francesa e a Revolução Americana. O respeito à individualidade e à igualdade de todos estão se transformando. A história humana, que foi evoluindo em prol do fortalecimento e valorização dessa individualização da pessoa, respeitando-a tal como é, tem tendido à conformação, ao esvaziamento dessa individualidade em prol de grupos. Isso nos coloca como mais um em meio à multidão, algo próximo ao que cantava o Pink Floyd, na canção “Another brick in the wall”, já que sumimos como indivíduos em meio aos grupos e estes, quanto mais se formam, menos representam uma união de todos. Em parte, isso desperta certa sensação de insignificância, com desvalorização do modo original de se pensar e se encarar o mundo. Tendemos ao embotamento, para nos sentirmos incluídos, já que a nossa “opinião própria” vai sendo a que assumimos como nossa, embora sejam palavras de outros, que decoramos.
Nessa semana vimos a renovação dos ataques aos judeus na Europa, em Amsterdã, na Holanda, com bandeira sendo rasgada, paredes pichadas e o fantasma dos pogroms nazistas ressurgindo, fazendo renascer temores de que se repitam horrores do passado! Aliás, para quem acha que certas coisas só foram praticadas por fascistas na Europa é bom relembrar que em plenos EUA houve campos de concentração, abrigando mais de 100.000 pessoas de origem japonesa, nos idos da 2ª Guerra Mundial. Em vez de aproveitar a globalização para nos unir mais, estamos nos dividindo e, dentro de nações, nos segmentando. Fenômenos assim envolvem subjetivismo e valorizam o emocional em lugar da razão e do pensamento crítico. Vamos assumindo as formas e sendo moldados e o fazemos voluntariamente, sem perceber.
Vemos movimento pela tributação das grandes fortunas, enquanto a história nos dá lições e bem sabemos que, ao tempo da Revolução Francesa, como explica Emmanuel Joseph Sieyés, em certo momento, a nobreza tentou oferecer-se para pagar tributos como o povão, desde que não se modificasse mais nada no estado de coisas vigente. Isso nos faz pensar que pagar um pouco mais de tributo não seria problema, sem se modificar mais profundamente a estrutura do sistema. Fala-se que doa tudo quem doa a única moeda que tem, o que possui mais valor do que algumas moedas doadas por alguém que tenha muitas mais! Não se trata de movimentos com esse ou aquele nome ou propósito e sim de questões humanas e comportamentais, algo como “vão-se os anéis e ficam os dedos”. Nesse sentido, tributar as grandes fortunas não deverá gerar resistências maiores e, se passar no Congresso Nacional, será vendido como uma grande vitória…
Ocorre que, enquanto se escreve este artigo, divulgou-se o pacote do governo e tudo isso virou aumento da cobrança de valores a quem ganha cerca de 50 mil reais – sobrecarregando (mais) a classe média. A propósito, conceder isenção de IR para quem ganha até cinco mil reais custará 45 bilhões a mais aos cofres públicos, o que não coincide com o corte de gastos que se esperava do governo!
No mais, a questão encerra mais um discurso do que um resultado prático, efetivo, aos tesouros públicos que já estão muito comprometidos com tantos gastos e pagamentos de dívidas que o eventual gotejar de novas receitas não será o bastante para o equilíbrio. Independentemente da grandeza das pretensões e luzes das lógicas envolvidas, as coisas não são tão determinantes se são tratadas como iniciativas sem clara ligação com o contexto mais amplo. Estamos vendo erodir vínculos importantes como sociedade integral. Estamos nos fracionando e a segurança comum, aquela que a Nação deve nos fornecer e nos envolver, em nós desenvolvendo intensa sensação de pertencimento, está fluída. Sem a segurança em si e a sensação de segurança, os nossos individuais projetos e percepções são atingidos. Ora, acabamos de sediar o G20 e vimos que carro oficial foi furtado e que militares do exército foram cercados por bandidos e tiveram que pedir apoio à polícia militar. Se os fatos acima ocorreram em plena cidade sede, com intenso reforço no policiamento – mais os efetivos de servidores que acompanharam comitivas internacionais – é crível se reconhecer não integral a segurança, principalmente para os daqui que trabalham e pagam impostos. O singelo exemplo talvez represente o que cada família sente no seu cotidiano, no seio dos seus lares, ao sair para as ruas para estudar e trabalhar, pegar ônibus, trem ou dirigir o seu carro. Pior: parece que já nos acostumamos a essa insegurança…
Temos sido passivos, mais acostumados a servir, a ser dirigidos e a aderir a ventos que ora sopram neste ou naquele sentido. As coisas vão seguindo, ano após ano, enquanto certas palavras não são ditas, não são demonstradas, não são iluminadas para que todos vejam. Certas questões ficam quieta, porque devem assim ficar. Não há interesse claro em se agitar certas situações, em se arrumar a casa, em se corrigir antigas práticas ou se mexer em certos problemas, parecendo que deve-se deixar adormecidas certas verdades enquanto o povo estiver satisfeito em servir e houver distrações no estilo “pão e circo” romano.
Mudam os dignatários mas o Poder continua agindo como tal, sendo infiel aos que lhe juraram fidelidade e agindo como o casaco que envolve os que sentam nos seus tronos, fazendo com que se incorpore neles para que estes se sintam fortes e inatacáveis e eternos poderosos, como se tivessem sido talhados para viver esse momento, enquanto as forças terríveis – às quais se referia o presidente Jânio Quadros – ou outras que estejam nas sombras, por vezes, manipulando os cordéis do poder, se mantém imunes e alheias a tudo.
Culpam o déficit da previdência e da aposentadoria dos trabalhadores e servidores – a mesma que foi sangrada noutros governos, que dela se valeram para construir Brasília e fazer outros gastos… Isso exemplifica como tudo tem sido feito “mais ou menos” há anos – e ninguém estranha ou protesta! Essa “catumba” é nossa que, curiosamente, continuamos aceitando o bom para não ter o risco de ficar com o ótimo!
* Rogério Reis Devisate é advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ.