
O cinema norte-americano, via de regra, peca pelo excesso de linearidade e lógica - créditos: divulgação
17-01-2025 às 19h19
Philippe Oliveira de Almeida*
Em 1985, o jornal francês Libération perguntou a alguns cineastas qual o propósito de seus trabalhos. O carioca Joaquim Pedro de Andrade – responsável por clássicos como ‘O padre e a moça’ e ‘Macunaíma’ – respondeu: “Para chatear os imbecis. Para não ser aplaudido depois de sequências dó de peito. Para viver à beira do abismo. Para correr o risco de ser desmascarado pelo grande público”. A declaração do mestre brasileiro foi musicada pela brilhante cantora e compositora Adriana Calcanhotto – a canção, que recebeu o título ‘Por que você faz cinema?’, faz parte do álbum ‘A fábrica do poema’, de 1994.
Escrevo estas linhas ainda impactado com a notícia da morte do grande cineasta estadunidense David Lynch (20.01.1946 – 16.01.2025). Desconfio que Lynch concordaria com a resposta de Joaquim Pedro de Andrade: seu cinema também chateou imbecis, colocou-o (e colocou-nos) à beira do abismo etc. Obras como ‘Eraserhead’, ‘O homem elefante’ e ‘Veludo azul’ ampliaram a consciência e expandiram a imaginação de várias gerações (e talvez seja essa a principal tarefa da arte).
O cinema norte-americano, via de regra, peca pelo excesso de linearidade e lógica. Não deixa nada à consciência e à imaginação do espectador. O trabalho do superestimado Christopher Nolan poderia servir-nos de exemplo: tido por alguns (sabe-se lá Deus a razão!) como um dos maiores cineastas de sua geração, Nolan, no mais das vezes, atém-se a narrativas formulaicas, nas quais cada ato deve ser meticulosamente mastigado para o público. Mesmo ‘A origem’ (Inception), película que pretende falar de SONHOS, não tem nada de genuinamente onírico: as personagens de Nolan não sonham com animais falantes, a rua da infância, fantasias sexuais secretas… suas mentes são dominadas por cenas de tiroteios, carros explodindo, aviões caindo – as fantasias de poder yankees. O filme faz-nos indagar, inclusive, se Nolan teria de fato a capacidade de sonhar. Chego a concordar com a frase do pensador indígena Davi Kopenawa: “os brancos dormem muito, mas só conseguem sonhar com eles mesmos”.
(Compare-se ‘Inception’ com a belíssima animação japonesa ‘Paprika’, dirigida por Satoshi Kon. Embora tenha se “inspirado” no anime, o trabalho de Nolan é muito inferior. ‘Paprika’ arrasta-nos para uma fantasia idílica de cor e luz digna de Hieronymus Bosch, fazendo-nos, a todo instante, questionar se estamos de fato assistindo a um filme, ou se dormimos nos braços de Morfeu).
Herdeiro do italiano Federico Fellini – que, em mais de uma ocasião, descreveu como sua maior influência –, David Lynch imprimiu a seus filmes uma extraordinária atmosfera onírica, desafiando a obsessão estadunidense pela “clareza narrativa”. Críticos ainda hoje especulam sobre qual seria a “mensagem” subjacente a obras como ‘Cidade dos sonhos’ (Mulholland Drive) e ‘Império dos sonhos’ (Inland Empire). Como num sonho (ou num poema) as cenas das películas de Lynch se sobrepõem orientadas por livre associação (a lógica da fantasia), e não por relações de causa e efeito (a lógica da ciência). Cabe ao expectador jogar com os múltiplos significados que as imagens que Lynch lança na tela oferecem.
O russo Andrei Tarkovski (na minha modesta opinião, o maior cineasta de todos os tempos, e um dos maiores artistas do século XX) dizia que o verdadeiro objeto do cinema é o tempo. Se a música é a arte do som, e a pintura, a arte da imagem, o cinema é a arte da temporalidade. Na concepção de Tarkovski, o cineasta, por meio da edição e da montagem, arrasta o expectador para outras percepções do tempo. Cena 1: um homem e uma mulher casam-se numa pequena capela; seus rostos sorridentes indicam que estão felizes. Cena 2: o casal está sentado em uma cozinha, almoçando e trocando carícias. Cena 3: a mulher está num leito de hospital, pálida e abatida. Cena 4: vemos o homem de pé, sobre um túmulo, em prantos. Cena 5: de volta à cozinha, o homem janta, solitário, e ao fundo, uma fotografia de sua esposa. Em poucos minutos, essa sucessão de cortes constrói uma experiência de temporalidade, permite-nos viajar através meses (talvez anos) na vida das personagens.
Ora, Lynch soube, como poucos, “esculpir o tempo” (é esse o título do principal livro de Tarkovski com suas reflexões sobre a sétima arte), jogando com edição e montagem de modo a construir universos novos. Os filmes de Lynch brincam com nossas expectativas, rompendo com os padrões hollywoodianos de narrativa.
As personagens de Lynch estão perfeitamente ajustadas ao mundo delirante que o cineasta traça. São todos, em maior ou menor medida, perversos – estranhos, e estranhamente parecidos CONOSCO. Ilustram, à perfeição, o que Freud designou como “infamiliar”. Lynch mostra que, sob o verniz de “normalidade” e “sanidade”, somos todos tão sádicos quanto o Bobby Peru (o magnífico antagonista de ‘Coração selvagem’ interpretado por Willem Dafoe). É nos SONHOS – e no cinema – que nossa estranheza irrompe, vem à tona. O cinema de Lynch tem, assim, um aspecto “terapêutico”: coloca-nos (tal como os trabalhos do chileno Alejandro Jodorowsky, com o qual possui profundas conexões) diante de nosso inconsciente, daqueles aspectos de nós que buscamos ciosamente reprimir.
Depois de subverter o cinema, Lynch se propôs a – a partir de 1990 – revolucionar a televisão. Foi, juntamente com Mark Frost, responsável pelo disruptivo seriado ‘Twin Peaks’. Poucos programas televisivos foram tão influentes quanto ‘Twin Peaks’. Semana após semana, fãs esquadrinhavam a tela em busca de pistas que os ajudassem a desvendar a morte de Laura Palmer (e os incontáveis outros mistérios que, ao longo dos episódios, a série apresentava). Uma obra de arte é composta, não só do produto apresentado pelo artista, mas das incontáveis interpretações cerzidas, no correr do tempo, pelo público. Ora, Lynch soube, com maestria, explorar as ESPECULAÇÕES dos expectadores. O sucesso de seriados como ‘Arquivo X’ e ‘Lost’ se deveu, em grande medida, às inúmeras hipóteses que, com afinco, expectadores formulavam e debatiam. Acompanhar esses programas tornou-se uma experiência compartilhada – muitos dedicavam horas e horas, todos os dias, trocando impressões, conjecturando sobre mensagens “cifradas” etc. (Poderíamos, até mesmo, dizer que os encerramentos de ‘Arquivo X’ e ‘Lost’, buscando “amarrar” as pontas soltas criadas no curso das temporadas, ficou aquém das fanfics que circulavam entre o público). ‘Twin Peaks’, nesse sentido, foi pioneira – a marca de Lynch segue perceptível na relação que temos, hoje, com programas tão distintos quanto ‘Yellowstone’ e ‘Agatha desde sempre’.
Atualmente, filmes e séries esforçam-se, ao máximo, para não chocar o público, não “desapontá-lo”. Com a ajuda da inteligência artificial, roteiristas buscam diagnosticar os anseios dos expectadores, e atendê-los com zelo. São muitos os casos recentes de obras ARRUINADAS em virtude da gana de acolher totalmente os desejos dos “fãs” – “sou fã, quero service”… Basta que nos lembremos de ‘Star Wars: a ascensão Skywalker’! Temos, assim, produções audiovisuais feitas, não para dilatar nossas cosmovisões, mas para reforçar as crenças e os valores que já temos. Trabalhos que não nos obrigam a ver o que não queremos, que não nos obrigam a confrontar o “infamiliar”. Nossa miséria intelectual e afetiva talvez se deva, em parte, a isso: cineastas que abandonaram a oniromancia, a interpretação dos sonhos. Nessa terra devastada, Lynch (esse grande oniromante) fará muita falta.
*Professor adjunto de Filosofia do Direito na Faculdade Nacional de Direito (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Possui pós-doutorado pelo Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina e pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.