
O golpe de 1964 é uma mentira que se fez oficial pela força, pela farda e pela manipulação da narrativa. CRÉDITOS: Enio Cartum
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01-04-2024 às 09h20
Claudio Siqueira*
Era noite quando desligaram a luz da democracia. Um silêncio frio se espalhou pelas rádios, pelos jornais, pelas praças. O país acordou no dia seguinte sob nova ordem, mas a farsa começou na véspera — como quem antecipa a mentira para que ela pareça verdade.
O golpe de 1964 é uma mentira que se fez oficial pela força, pela farda e pela manipulação da narrativa. Os militares registraram a data no dia 31 de março para driblar o desconforto simbólico de assumir que tomaram o poder em 1º de abril — o Dia da Mentira.
Mas é exatamente nesse dia que o Brasil foi mergulhado numa farsa sangrenta. A data real do golpe é 1º de abril de 1964. Foi nesse dia que João Goulart amanheceu deposto, foi nesse dia que o general Castello Branco foi alçado ao poder, foi nesse dia que a democracia brasileira foi desfeita por decreto e baioneta.
A tal “ameaça comunista” nunca passou de espantalho. Não havia levante armado em curso, não havia partido comunista perto do poder, não havia qualquer risco de sovietização tropical. Havia, sim, um governo trabalhista, popular, reformista e eleito — com os vícios e virtudes típicos da democracia brasileira. Havia Jango tentando implementar reformas de base, mexendo com os interesses dos mesmos donos de sempre. E isso, para a elite, era inaceitável.
O golpe, que depois virou “revolução” no vocabulário da propaganda oficial, não só derrubou um presidente, como instaurou um regime de Estado terrorista: prisões arbitrárias, tortura institucionalizada, censura, desaparecimentos forçados, exílio de artistas, intelectuais, operários, estudantes, padres, mulheres. Gente comum — muita gente comum — que pagou caro pelo crime de discordar, ou simplesmente por estar no lugar errado.
E o mais perverso: fizeram isso dizendo que estavam “salvando a democracia”. Uma democracia que eles próprios pisotearam com coturnos sujos de sangue e silêncio.
Durante a reunião que decidiu pelo AI-5, em 1968, foi o ministro Jarbas Passarinho quem selou o pacto com o arbítrio ao declarar: “Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência.” Estava autorizado o terror.
Se o golpe é uma mentira, então lembrar o que de fato aconteceu é um ato de justiça histórica. Porque a História não é apenas memória: é terreno de disputa. Quem define o passado, molda o presente — e tenta controlar o futuro.
E é por isso que não se pode esquecer nem perdoar. Porque quando a mentira vira tradição, a verdade vira subversão.
Lembrar é resistir. Contar é revidar. Educar é desarmar a próxima tentativa. A memória não é passado — é trincheira
* Claudio Siqueira é editor de vídeo, acadêmico de antropologia na UNILA