Além de tecnologicamente inovador, Santos Dummont também foi um defensor da paz entre os povos. Percebendo as possíveis repercussões negativas de sua invenção, defendeu publica e reiteradamente que se restringisse o uso do avião para fins bélicos.
11/12/2024 às 10h23
Mariana Grilli Belinotte*
A eterna síndrome de vira-lata faz com que muitos acreditem que o Brasil é incapaz de
inovar ou de competir com o resto do mundo. Não se pode, é claro, esquecer as mazelas que
historicamente afligem nosso povo. Mas também devemos lembrar do potencial do país de se
inserir em setores estratégicos da indústria de alta tecnologia, tanto no âmbito civil quanto militar.
Um dos setores estratégicos mais bem-sucedidos no Brasil, tanto hoje quanto historicamente, é a
indústria da aviação comercial e militar.
Afinal de contas, o Brasil é a pátria do inventor do avião e pai da aviação, Alberto Santos
Dummont. Em 1906, o inventor apresentou ao mundo o primeiro aparelho voador mais pesado que
o ar, conforme homologado pelo Aeroclube da França. Além de tecnologicamente inovador, Santos
Dummont também foi um defensor da paz entre os povos. Percebendo as possíveis repercussões
negativas de sua invenção, defendeu publica e reiteradamente que se restringisse o uso do avião
para fins bélicos. Vendo os aviões participando do “derramamento de sangue de irmãos” da
Revolução Constitucionalista de 1932, teve sua decepção final e pôs fim a sua vida. Santos
Dummont provavelmente já antevia o uso do avião como instrumento de destruição em massa e de
dano a populações civis em vez de um meio de defesa, proteção e resgate, como vimos acontecer
por diversas vezes nos últimos 100 anos — pense, por exemplo, nos bombardeios alemães sobre
Londres na Segunda Guerra Mundial, ou sobre a Iugoslávia na década de 90.
Infelizmente, Santos Dummont não viveu para ver os aviões e os aviadores brasileiros participando da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e liberando o continente europeu do nazi-
fascismo na Segunda Guerra Mundial. A então recém-formada Força Aérea Brasileira (FAB), defendeu o litoral brasileiro dos ataques de submarinos alemães e enviou centenas de pilotos, alguns
deles consideravelmente experientes devido a sua atuação prévia no Correio Aéreo Nacional
(CAN). A FAB sofreu dezenas de baixas e vários integrantes capturados como prisioneiros de
guerra, mas alcançou resultados expressivos, especialmente durante a Ofensiva da Primavera.
O
tamanho do desafio enfrentado à época ficava claro no próprio lema da FEB: enviar soldados à
guerra na Europa parecia tão improvável quanto uma cobra fumar. E no entanto, esse desafio foi
superado, e a Força Aérea retornou ao Brasil após um batismo de sangue impressionante — e
reconhecido internacionalmente como tal.
Com o retorno da FEB, o Correio Aéreo Nacional (CAN), que já existia desde 1931 com
outros nomes, foi reestruturado. Com mais experiência e mais aeronaves à disposição, o Correio
expandiu suas rotas, de forma a melhor cumprir seu objetivo de integrar o país e a América do Sul.
O Correio Nacional pode ser visto como um impulsionador da interiorização e ocupação do país, e
do desenvolvimento da aviação nacional.
O Correio Nacional é um exemplo da importância estratégica do avião para o Brasil, que
permite cobrir as ondas distâncias do Brasil em poucas horas, e conectar locais de difícil acesso.
Foi essa consciência sobre o papel estratégico do transporte aéreo no Brasil que inspirou a criação do
ITA, uma instituição modelo e de alto nível, que desde 1950 forma profissionais civis e militares
extremamente capacitados. Além disso, contribuiu e contribui para desenvolver a região em que foi
estabelecido (São José dos Campos) e, é claro, foi fundamental no surgimento da Embraer, em
1969, uma das mais bem-sucedidas empresas do Brasil, e a terceira maior fabricante de aviões
comerciais do mundo. No setor militar, a Embraer se destaca atualmente com o KC 390, um jato de
transporte militar que tem sido encomendado por Forças Armadas de todo o mundo.
Agora, o desafio do momento é a operacionalização e a transferência de tecnologia para a
fabricação dos caças Gripen no país. A aquisição dos Gripen visa dois objetivos. O primeiroé
atualizar a frota da Força Aérea, tornando-a mais capaz de cumprir com suas funções
constitucionais. O segundo objetivo é alavancar a indústria aeroespacial brasileira, obtendo
tecnologia e expertise que podem futuramente resultar em bons resultados comerciais e numa
indústria de defesa mais robusta e inovadora.
Mas o objetivo dessa coluna não é só celebrar a história, mas também chamar a atenção para
o tamanho dos desafios que já foram superados ao longo da história da aviação brasileira. O que
essa história nos mostra, mais do que um ufanismo gratuito, é que o Brasil já superou grandes
desafios até aqui, e não tem motivo nenhum para não conseguir superar os outros que se
apresentam. Quem poderia dizer, no início do século 20, que um brasileiro de Palmira-MG
inventaria o avião? Ou que a FEB não só chegaria até a Itália, mas que provaria seu valor, e o de sua
então extremamente jovem Força Aérea? Ou que uma empresa brasileira chegaria a ser a terceira
maior produtora de aviões do mundo? Ou seja, temos razões de sobra para acreditar no potencial da
aviação brasileira. Só precisamos relembrar nossa vocação para voar.
*Mariana Grilli Belinotte é bacharel e mestre em Direito (USP, UFMG) e doutoranda em Ciências
Militares (ECEME).