
Precisamos compreender que a água carrega consigo mais do que o que representa. CRÉDITOS: Divulgação
12-06-2025 às 09h35
Rogério Reis Devisate*
A Colômbia descobriu que a indústria de bebidas engarrafou 56 milhões de litros de água, ao custo de apenas 217 dólares.
O valor equivalia a 607.501 pesos, em moeda da época, pelo câmbio do ano de 2.016, conforme a publicação do portal Vorágine, referida pelo jornal espanhol El País, em matéria de 05 de junho de 2.025, assinada por Carlos Hernández Osorio. São muitos milhões de litros de água por uma precificação pequena. A questão aumenta em importância quando a capital, Bogotá, sofreu racionamento de água por um ano, apenas encerrado em abril de 2.025. A Ministra do Meio Ambiente da Bolívia, Susana Muhammad, considerou que o ministério atualizará as alíquotas incidentes sobre as concessões de exploração de água.
Sobre a situação do Brasil, a ABRAPCH – Associação Brasileira de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs) publicou matéria em seu site, considerando que o Brasil poderia arrecadar 12 bilhões de reais ao rever os preços em questão, registrando que, em média, “um metro cúbico (ou 1.000 litros) de água custa menos de um centavo (R$ 0,0062) para grandes negócios” e que, na comparação, “um consumidor doméstico em São Paulo paga R$ 37,96 por até dez metros cúbicos de água.”.
É importante fixar que a abordagem não se resume ao preço, que é fixado por parâmetros legais. O que está em jogo é o exato valor desse bem, pois a água doce, pura, não será infinita – e, por isto mesmo, tende a se tornar cada vez mais preciosa.
Muito além do preço e do custo das tarifas legais, em jogo estão os valores humanitários e de soberania alimentar, inclusive com questionamento do motivo pelo qual a água pode ser tão barata para uns e cara para outros. De fato, os parâmetros da indústria não se aplicam aos moradores e ao consumo da água nas suas casas… do mesmo modo que o padrão de cobrança pelo consumo doméstico não se aplica à indústria. Muito há em jogo e a equação pode não ter fácil solução, embora o caso boliviano possa nos inspirar.
Há cerca de 2 anos publicamos artigos, em jornais e sites especializados, abordando a “Grilagem de Águas”.
O fenômeno da histórica apropriação ilegal de terras públicas, chamado de Grilagem de Terras, parece se atualizar e ganhar ramificações, com a “apropriação da água doce potável, num fenômeno que, nos círculos doutrinários estrangeiros, se chama de water grabbing, passível de tradução como “grilagem de água”, como explicamos no nosso artigo intitulado “Disputa por terras e grilagem de águas”, publicado em 24 de maio de 2.023, no site Consultor Jurídico. A “Grilagem de Águas”, portanto, é tema inovador e, por isso mesmo, ainda com pouca visibilidade, embora relacionado com o contexto da citada matéria sobre os 56 milhões de litros de água colombianos, ao custo de, apenas, 217 dólares, bem como da nossa situação antes narrada e da não arrecadação de 12 bilhões de reais.
A produção de alimentos precisa de água. Contudo, não é adequado se condenar o agronegócio pelo uso da água, pois a que mais utiliza é proveniente das chuvas. Ainda que não fosse, a irrigação não é a fonte dos males sobre a água e sim de riqueza e geração de empregos – em toda a cadeia produtiva – em regiões tradicionalmente secas ou de baixos índices pluviométricos.
No mais, ainda que houvesse algum excesso eventual, aqui ou acolá, a política hídrica cabe ao Governo Federal, já que é de sua exclusiva competência, gestão e legislação (como previsto na Constituição Federal, art. 22, IV).
Calcula-se que, apenas, 0,007% da água doce do planeta esteja disponível para ser consumida pela população mundial, o que levou as Nações Unidas a considerar que, em 2.050, 5 bilhões de pessoas poderão ter precário acesso à água doce – o que corresponde a 5/7 da população mundial!
Daí a relevância do tema e o extremo cuidado que devemos ter, já, com as questões relacionadas às águas brasileiras.
Foi nessa linha a ideia de “grilagem de águas” e o seu contexto de consumo barato e apropriação das fontes naturais e dos cursos de água, bem como o uso de água para a produção que será consumida noutros países. Daí fica fácil compreender como afeta a humanidade o fato de se “levar” a água de um país para outro, seja in natura ou por seu envolvimento nos processos industriais e na produção de alimentos, mormente quando for extremamente barata.
Precisamos compreender que a água carrega consigo mais do que o que representa. Parecemos vê-la de modo subdimensionado. Isso se reflete no mau trato aos esgotos, no desperdício com vazamentos e na forma de a ver como algo eternamente disponível.
Aqui, buscamos, apenas, considerar a apropriação indevida da água doce e o seu potencial para piorar aspectos relacionados à soberania alimentar e aos impactos que, por si só, é capaz de ocasionar hoje e no futuro, sobre os destinos de povos e nações.
Não estar atentos a respeito não significa que outros não estejam. Aliás, como se diz popularmente, “quem desdenha quer comprar” e isso se aplica aos discursos genéricos sobre meio ambiente, sem foco ou clareza de propósito, inclusive quando levantam bandeiras de gestão estrangeira sobre território brasileiro, no que chamamos de “Pansoberania” (neologismo que introduzimos e trouxemos ao debate) ou de gerenciamento pseudo-partido sobre a Amazônia brasileira e outros fortes multisistemas de água doce, como o Aquífero Guarani.
Exemplo concreto – certamente não o único caso – está registrado em site do próprio Governo Federal, em postagem de 04.7.2018, feita pelo FUNDAJ – Fundação Joaquim Nabuco, onde se lê: “No oeste da Bahia, a escassez de água agravou-se nos últimos anos e acirrou os confrontos entre comunidades ribeirinhas e fazendas do agronegócio. Instaladas na região desde o século 19, famílias de posseiros apontam a irrigação das grandes plantações, iniciada na década de 1980, como principal causa da redução na vazão de rios e da morte de córregos e nascentes.” Novamente, como antes cogitado, pode haver situação peculiar na região, mas a responsabilidade é do Governo Federal, a quem cabe a gestão e as políticas e legislação a respeito.
No mais, quando um produto é barato demais, é natural que ocorra desperdício.
Ademais, não cabe se onerar uns e outros com tributos e novas taxações enquanto grande parte do sistema de consumo de águas submete-se a regime especial e tanto menos paga pela mesma água.
Não há duas fontes distintas de água e nem fórmula química diferenciada. São, de fato, dois preços e duas medidas e uma crescente oneração do consumidor doméstico, ainda objeto de campanhas contra o desperdício e vazamentos. Bem de uso comum tão valoroso não pode ser desprezado.
*Advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ.