Tadeu Martins em "Vozes do Vale que não se calam - créditos: divulgação
28-10-2025 às 12h00
Tadeu Martins*
Considerando que Redenção significa reparação, recuperação, regeneração ou correção, o nosso Vale do Jequitinhonha, que ocupa 15% do território de Minas Gerais, nunca deu “sorte” com essa palavrinha tantas vezes dita, redita, maldita e divulgada pelos capitalistas que nos tiram a paz, o sossego, a água, a saúde e destroçam o meio ambiente da nossa rica região. Ali vivem, segundo o IBGE-2022, 1.022.113 seres humanos que já estão cansados dessa enganação, desse canto da sereia, dessa conversa mole pra boi dormir.
Região composta por 80 municípios, rica em minerais como ouro, diamante, pedras preciosas, cristais, grafite, estanho, granito e lítio, entre muitos outros, o Vale, desde o período colonial, fornece riquezas para o mundo e sofre com o excesso de promessas de “Redenção”, que nunca se materializaram. Alguns filhos da região, os incautos (sem conhecimento) ou os mal-intencionados (com segundas intenções), pregam aos quatro ventos “agora a região conhecerá o desenvolvimento”, a cada ciclo da velha promessa que já virou conversa para encher linguiça, como bem disse o poeta Gonzaga Medeiros, acadêmico da ALVA. No quesito mineração, a verdade absoluta é que do Jequitinhonha se tira tudo e nada fica para o seu povo, a não ser a degradação ambiental.
Nem vamos falar dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, quando o Jequitinhonha forneceu ouro, diamantes e pedras preciosas em abundância, para enriquecer Portugal e alguns países da Europa. Naquele tempo os “colonizadores” não faziam quaisquer promessas: chegavam, invadiam, matavam os filhos da terra, os indígenas da Nação Borun, bravos defensores da região, e levavam tudo o que podiam. Quatro séculos de opressão, exploração e de genocídio do povo valejequitinhonhense. Recomendo a leitura da Carta Régia, de 13 de maio de 1808, do Príncipe Regente D. João VI ao Governador e Capitão General da Capitania de Minas Gerais, Pedro Maria Xavier de Ataíde e Mello, autorizando a guerra contra os índios Borun, chama dos de Botocudos pelos portugueses. Um dos episódios mais tristes da nossa história, um genocídio, um verdadeiro massacre de seres humanos, autorizado pelo poder vigente, apenas para se apropriar das riquezas da nossa região e dos Vales do Mucuri e Rio Doce.
Vamos lembrar apenas de alguns ciclos de promessas de Redenção do Jequitinhonha, já nos séculos XX e XXI, onde os capita listas já não usaram ou usam armas para matar pessoas, invadir a região e tirar tudo que queriam e querem, mas usaram e usam técnicas e estratégias modernas, como bem nos ensina o Noam Chomsky, filósofo norte americano, no seu livro “Mídia: Propaganda Política e Manipulação”, onde mostra algumas estratégias para manipulação das massas. Citarei apenas algumas, que são praticadas com força nos casos em questão, das muitas redenções do Jequitinhonha. Estratégia da Distração – distrair o povo, esconder notícias que seriam do interesse popular e encher todos os espaços com notícias sem nenhuma importância, como vida de famosos, reality shows, namoros, traições, etc. Uma verdadeira anestesia intelectual:
• Estratégia de tratar o povo como criança – quem é tratado como criança tem a tendência de responder como criança, de agir como criança, e aceitar tudo sem questionamentos.
• Estratégia de envolver o ser humano emocionalmente para esconder e minimizar a razão, incentivando o povo a não pensar.
• Estratégia de manter o povo na ignorância e na mediocridade – limitar o pensamento e a capacidade de questionamento. Por isso as classes menos favorecidas recebem educação de péssima qualidade.
• Estratégia de fortalecer a complacência com a mediocridade, emburrecendo o povo para dominar com mais facilidade.
Tudo isso tem sido usado com muita eficiência no Vale, ajudando a criar um povo que acredita e aplaude todos os “salvadores” que vêm de fora, pregando o milagre que está por vir. Em 1979 eu já dizia em uma canção, parceria com o menestrel Rubinho do Vale: “Acorda Jequitinhonha!”
Agora sim, vamos aos ciclos de promessas de Redenção do Jequitinhonha:
ANOS 1970/1980 A REDENÇÃO DO VALE, COM O EUCALIPTO.
No final da década de 70 o eucalipto invadiu o Vale do Jequitinhonha, com total apoio da ditadura militar, do governo estadual, da Diocese de Diamantina e de alguns prefeitos incautos. O reacionário Arcebispo D. Geraldo de Proença Sigaud foi um dos maiores defensores do eucalipto como fator de “desenvolvimento” para o Vale do Jequitinhonha.
Nas chapadas do Alto Jequitinhonha tinham muitas famílias de trabalhadores rurais morando há mais de 50, 60, 100 anos, mas as terras foram consideradas terras devolutas, do Estado. Começa uma grande pressão para retirar as famílias das terras e doá-las para as reflorestadoras. Grileiros, jagunços e a própria polícia amedrontavam os camponeses e muitos “venderam” as suas terras e foram engrossar favelas nas periferias das cidades do Vale, ou em Belo Horizonte e São Paulo.
Um grande líder camponês surgiu nesta luta: Vicente Nica. Morador da comunidade de Mato Grande, conseguiu reunir todos os posseiros de Mato Grande e São Miguel e tomar uma decisão perigosa na época: “daqui só sairemos mortos”. Nas comunidades de Mato Grande e São Miguel, moravam 38 famílias que cuidavam da queles 700 hectares de terra há mais de 60, 100 anos. Grileiros e jagunços derrubaram 3.000 metros de cercas, queimaram canaviais e plantações para forçar a “compra” das terras pelas reflorestadoras.
Com documentos arranjados e outros de pequenas glebas compradas, grileiros entraram na Justiça, pedindo a reintegração de posse, a expulsão dos posseiros. Líderes como Vicente Nica, Francisco Gonçalves, Elias Gonçalves, Paulino Macedo e João Teixeira, todos de Mato Grande, foram intimados algumas vezes pelo juiz Alvanato de Almeida, da Comarca de Minas Novas. Juiz que, segundo várias denúncias desses líderes, defendia abertamente a chegada do “progresso” com as reflorestadoras. Ou seja, defendia o governo estadual e a ditadura militar, agindo contra os posseiros. Um Oficial de Justiça foi à comunidade de Mato Grande para efetuar o despejo das famílias, eles resistiram. Com o apoio do padre Silvano e da irmã Paula (Paróquia de Minas Novas), do Jornal Geraes, do jornalista George Abner, dos sindicatos de Turmalina e Minas Novas, da Fetaemg, dos políticos Nilmário Miranda, João Batista Mares Guia, do nosso confrade da ALVA, Apolo Lisboa, e de muitos mineiros de várias regiões, a Justiça perdeu o medo da ditadura e a luta terminou em 1984 com vitória dos posseiros. Hoje, quem entrar naquelas terras verá um oásis de 700 hectares, cercado de eucalipto por todos os lados. O eucalipto ocupa grande parte do Alto Jequitinhonha, com o imenso prejuízo da monocultura, acabando com a fauna e a flora e trazendo riqueza apenas para as empresas que exploram o eucalipto. Da tão esperada Redenção, só restam hoje poucos empregos de trabalhadores braçais, favelas em cidades maiores mais próximas e estradas esburacadas pelo peso dos caminhões que transportam o eucalipto para outras regiões. É sempre assim, o Vale fica com o prejuízo e gera riquezas para outras regiões do Brasil e do mundo.
ANOS 1970/2000 A REDENÇÃO DO VALE, COM A MINERAÇÃO.
Outra falsa promessa: com a riqueza vinda da mineração, haverá a Redenção do Jequitinhonha. E tome mineradoras invadindo o Vale. Uma das mais antigas poluidoras do Rio Jequitinhonha foi a Mineradora Tejucana, que começou a atuar na região de Diamantina ainda nos anos 1960. A mineradora pertencia a um grupo belga e em 1995 foi vendida a empresários de Diamantina. A mineradora mantinha no rio Jequitinhonha cinco dragas, uma delas era a maior do mundo, um equipamento monstruoso, mais alto que um prédio de cinco andares, que retirava areia e cascalho e os empilhava em grandes montes, destruindo tudo em volta e depois jogando os detritos no leito do rio. Além da Tejucana, da Sada Mineração, da Mineradora Rio Novo, muitas outras mantinham dragas no rio Jequitinhonha, e juntas o agrediam em uma extensão de cerca de 200 quilômetros. Elas deixaram o rio bastante assoreado, cometendo crimes como desvio do curso do rio, a destruição da mata ciliar, e o despejo de óleo diesel nas águas, eliminando peixes e outros animais. Além do óleo diesel, do cascalho e da areia, o rio recebia também uma grande quantidade de mercúrio, o que contaminava as águas e produzia doenças nas comunidades ribeirinhas, que sofriam com problemas dermatológicos, gastrointestinais, e até com um aumento considerável de casos de câncer e do número de cirurgias para retirada de pedras na vesícula. Vendo tudo isto acontecer, sem qualquer intervenção das prefeituras e dos governos estadual e federal, os mora dores da região começaram a protestar.
Praticando a Estratégia da Distração, a imprensa nada divulgava sobre a destruição do rio e a agressão à saúde dos valejequitinhonhenses. Assuntos sem qualquer importância ganhavam as páginas dos grandes jornais do Brasil. Isto me levou a uma ação que acabou dando uma grande repercussão em meados de 1995: publiquei um livreto de cordel intitulado “Jequitinhonha não é Brasil”, que distribuí para a imprensa brasileira, para deputados, senadores, ministros, para o Governador de Minas e para o Presidente da República. Recebi respostas de vários parlamentares, do Governador de Minas, Eduardo Azeredo, do Ministro da Saúde, Adib Jatene, e do Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.
O povo do Jequitinhonha se organizou, fez protestos, e em 1995 fechou a ponte sobre o rio Jequitinhonha na cidade de Itaobim. Graças à luta do povo, imprensa mineira começou a nos apoiar no final de 1995, e o governo estadual finalmente fechou as dragas em 1996/1997. Vieram também as “Redenções” que seriam geradas pelo grafite, pelo estanho e pelo granito. As minerações continuam, tiram tudo do Vale do Jequitinhonha e deixam a degradação ambiental. Ainda hoje, caminhões carregados com gigantescos blocos de granito, e outros com imensas toras de eucalipto, destroem as estradas da nossa região, as BRs 367 e 116.
ANOS 2010/2020 A REDENÇÃO DO VALE, COM O LÍTIO
Agora, após a pandemia, o mundo assiste mais uma promessa de Redenção do Jequitinhonha, com a exploração das nossas ricas jazidas de Lítio. O Lítio, como poucos sabem, é um metal usado para a fabricação de possantes baterias; na formação de ligas metálicas importantes; na produção de lubrificantes para máquinas que trabalham em altas temperaturas; na fabricação de cerâmicas e vidros resistentes ao calor; no funcionamento dos marcapassos cardíacos; e na fabricação de medicamentos psiquiátricos contra a depressão e a bipolaridade.
A maioria dos brasileiros não sabe que, da irradiação do Lítio, se produz o Trítio, um isótopo do Hidrogênio, usado na iluminação de relógios, placas e painéis, na mira de armas de fogo e na produção da Bomba de Hidrogênio, uma bomba atômica com imenso potencial de destruição, considerada a arma mais poderosa do mundo.
As promessas maiores da Redenção do Jequitinhonha pelo Lítio, vieram do desgovernador Zema, aquele que vomitou falas preconceituosas sobre os nossos irmãos do nordeste brasileiro; aquele carente intelectual que perguntou se Adélia Prado era funcionária de uma emissora de rádio; aquele que convidou empresários a montar negócios na região, afirmando que lá a mão de obra é barata, pois “uma empregada doméstica ganha R$ 300,00 por mês”. O desgovernador até mudou o nome do Jequitinhonha para Vale do Lítio, ou “Lithium Valley Brazil”, conforme as placas e suntuosas inserções luminosas na Times Square, nos Estados Unidos. Desgovernador Zema, nós fomos, somos e seremos o Vale do Jequitinhonha, região rica em Lítio e muitos outros minerais. Respeite a nossa região.
No dia 27 de julho de 2023 o desgovernador comemorou a saída da primeira carga de Lítio do Jequitinhonha, despachado do Porto de Vitória (ES) para a China. Foram enviadas 30 mil toneladas, sendo 15 mil de Lítio puro e outras 15 mil toneladas de subprodutos ultrafinos do Lítio. Já podemos perceber que a empresa Sigma, o governo brasileiro, a China, os Estados Unidos e os investidores na bolsa de valores Nasdaq vão ganhar muito dinheiro. E o Vale do Jequitinhonha? Ficará mais uma vez com a promessa de “Redenção”, herdando apenas buracos, poluição do rio e degradação do meio ambiente.
De Redenção em Redenção o nosso Jequitinhonha continua rico, e empobrecido pela ação predatória e cruel de grandes empresas e políticos apaniguados, que nos levam os minerais, as florestas, o eucalipto e nos roubam a paz, a cidadania, e até o sonho de usar as riquezas do Vale do Jequitinhonha em favor do nosso povo.
Agora é só aguardar a tão esperada “Redenção do Jequitinhonha”, que certamente será repetida e cantada pelos exploradores do nosso povo, quando forem descobertas jazidas de metais mais preciosos como Prata, Índio, Platina, Irídio, Urânio, Plutônio, Terras Raras e, quem sabe, Paládio e Ródio, que são os metais mais caros do mundo. A verdadeira Redenção do Jequitinhonha só virá pela união do seu povo, quando passar a discutir abertamente a realidade da região e buscar soluções coletivas para os muitos problemas que vi vemos. Desde 1978 o movimento cultural, ainda que timidamente, é a única força que tem atuado nessa direção. É hora de parar de eleger falsos profetas e paraquedistas vindos dos quatro cantos de Minas, que nos levam os votos, apoiados por falsas lideranças, vereadores e pastores que vendem os votos e a dignidade do povo valejequitinhonhense.
É hora de praticar o sonho que eu e o Rubinho do Vale cantamos em 1979:
“É todo um povo acomodado que começa a despertar e sonha
Lutar pela libertação da Terra do Sol. Acorda Jequitinhonha!”
*Tadeu Martins é Poeta, Escritor, Apresentador, Presidente fundador da ALVA – Academia de Letras do Vale do Jequitinhonha

