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14-03-2025 às 10h22
Wilson Cid*
Se existe algo a que não se pode chamar de novidade na política brasileira é o papel do vice na acidentada história republicana que viveram nossos antecedentes, e ainda hoje vivemos nós. Aqui, mais que em qualquer outro lugar do mundo, o vice jamais foi condenado a papel decorativo, mero eventual. Não. Em pelo menos meio século da crônica política, ele esteve presente, e foi decisivo em momentos sensíveis. Muitas vezes saiu daquela cadeira de substituto à espera do imprevisto, e foi assumir o poder central.
O vice, na hora em que o destino acena com a rampa do Planalto, convém ser discreto, até que cessem os tiroteios dos momentos conturbados; não deve se colocar sob a linha de fogo que caracteriza as crises. Como fez Itamar em 92, como também fez Michel Temer. Não permitir sinais de possível envolvimento em tramas e acidentes. Muito menos demonstrar que pode estar torcendo para acontecer o pior com o titular, a quem haverá de suceder. Quando aparecem suspeitas de interesses atravessados ficam ressentimentos, como se deu entre o presidente Figueiredo e seu vice Aureliano Chaves.
Discretos e comedidos, eis a receita de conduta para um vice adequado. Diferentemente, por exemplo, do atabalhoado Manoel Vitorino, vice imprudente de Prudente de Morais. O presidente se licenciara para submeter-se a uma cirurgia, da qual muitos achavam que não conseguiria sair vivo. Também acreditando nisso, tão logo se viu no cargo, o baiano Manoel mudou quase todo o Ministério, reformulou condutas políticas do governo, e até mudou a sede da Presidência, que estava no Itamaraty e passou para o Palácio do Catete.
Prudente de Morais, horrorizado, abandonou o leito da convalescença em Petrópolis, voltou correndo para o Rio e reassumiu.
O jornalista Hélio Fernandes, que conhecia bem esses fatos, já escreveu que, em matéria de vices, o Brasil tem dois recordes mundiais. Carlos Luz, que esteve apenas um dia na presidência, e José Sarney, que ficou devendo à morte de Tancredo Neves os cinco anos em que presidiu o Brasil. Não se incluem na lista dos recordistas as três horas em que José Maria Alkmin substituiu o presidente Castello Branco, quando este foi ao Paraguai para inaugurar uma ponte, ao lado de outro colega ditador, Alfredo Stroessner.
O vice Sarney, como se disse, é um caso universal. Foi vice na presidência mais tempo que o americano Andrew Johnson, que havia herdado 3 anos e 11 meses do mandato de Abraão Lincoln; mais que Theodoro Roosevelt, que ficou com 3 anos e 8 meses de Mckinley; e Truman, que completou quase 4 anos de Franklin Roosevelt.
No Brasil, a biografia do vice republicano é muito rica, sem que dela nem o primeiro haveria de escapar. Em 1891 um golpe do marechal Deodoro da Fonseca durou poucos dias, e foi derrubado pelo vice Floriano Peixoto, que assumiu prometendo eleição imediata, mas logo esqueceu a promessa.
Nilo Peganha era o substituto de Afonso Pena, que morreu em 1909, e assumiu. Nove anos depois morre o presidente Rodrigues Alves, que já vinha enfermo da campanha eleitoral. Seu vice, Delfim Moreira, não menos enfermo, com agravante da doença mental, passou o tempo assinando papéis, que em sua maioria ignorava. Foi o tempo da chamada “Regência Melo Franco”. O ministro de Obras, Afrânio Melo Franco, foi, de fato, quem governou o Brasil.
A Velha República fecha suas páginas em 1930, e vem a chamada Aliança Liberal, que levaria Getúlio Vargas ao poder; mas aí a História mudou o enredo, pois seu candidato a vice, João Pessoa, foi assassinado, resultado de problemas pessoais, mas o crime logo tomou falsa conotação política, aproveitado para servir aos interesses do momento.
Getúlio, pai do grande golpe que em 37 desaguou na ditadura do Estado Novo, pagou o preço em 1954, suicidando-se. Seu vice, Café Filho, assumiu e adoeceu no cargo, vítima de cardiopatia, num dos momentos mais delicados de nossa História. Quis voltar, mas estores militares o impediram. Substituiu-o Carlos Luz, por sua vez sucedido por Nereu Ramos, a quem coube passar o cargo a Juscelino Kubitschek, em janeiro de 1956.
A jornada dos substitutos continuou. E saltou para 1961, quando a renúncia do presidente Jânio Quadros foi buscar João Goulart, que visitava a China; mas, sob resistência dos militares, só assumiu pela via de um parlamentarismo híbrido. Derrubado pelo golpe de 64, vieram vices civis, sem chance de aparecer. Alkmin com Castello Branco, Pedro Aleixo com Costa e Silva. Mas, quando o general-presidente Costa e Silva adoeceu e morreu, e vice mineiro foi rechaçado, e em seu lugar entrou uma junta militar.
Redemocratizado o País, nem por isso o destino dos vices sairia de cena. Em 85, morto Tancredo Neves, sobe José Sarney. Em 92, decretado o impeachment de Fernando Collor, assume Itamar Franco.
Vale registrar na crônica desses homens, pouco eventuais, um detalhe singular. O titular da vice-presidência, que antes de 1964 elegia-se em chapa própria, independentemente do presidente, é para suceder a este em caso de morte ou impedimento definitivo. Aqui ele também substitui. O que resulta em um caso curioso: no Brasil o vice assume, fica aqui decidindo e assinando pelo governo em nome da República, enquanto o presidente, em viagem ao Exterior, faz a mesma coisa… Damo-nos ao luxo de dois presidentes, curiosa distorção que as muitas promessas de reforma política não corrigiram.
* Wilson Cid é jornalista