Janet Malcolm - créditos: divulgação
120-12-2025 às 09h26
Giovana Devisate
Existe um livro póstumo da Janet Malcolm, chamado Imagens Imóveis, no qual ela usa fotos da sua própria vida como ponto de partida para escrever histórias brilhantes. Ela fala de si mesma, da família, dos amigos dos pais, do processo de mudar de país, aprender uma outra língua e viver em uma nova cultura e, no decorrer das páginas, parece que ficamos mais íntimas: acompanhando os seus pensamentos, encontramos menos o mundo que vivemos e mais o mundo dela, que surge dos fragmentos de vida que ela apresenta, pontua, acentua e suaviza.
Os recortes que ela faz nos confirma que não escolhemos sobre o que lembrar. Entre todas as experiências de vida, não decidimos quais lembranças que fazem morada e quais que vão escapar de nós… Acho que ninguém sabe por qual razão se lembra de alguma coisa e quanto mais a gente vive, mais as lembranças se embaralham e a linha do tempo se estreita, com algumas outras memórias ficando esquecidas pelo caminho também.
No decorrer do livro, a gente começa a entender como funcionavam as relações entre ela e os pais, a irmã, os amigos e como a vida dela, na infância e nos anos seguintes, eram. Ela decorre sobre alguns detalhes que a gente jamais saberia se ela mesma não tivesse registrado no livro. Através desses detalhes, a gente também consegue fazer um recorte da época e imaginar melhor as histórias e os contextos em que aconteceram. Inclusive, os dramas envolvendo a família judaica erradicada em Nova York por causa da Guerra.
No livro, a autora diz que “o passado é um país que não emite vistos. Só podemos entrar nele clandestinamente”. Isso me faz refletir sobre as memórias que queremos acessar e não conseguimos, das coisas que excluímos da nossa mente e nunca mais conseguimos recordar ou daquelas coisas que só lembramos a partir de conversas, fotografias e relatos de outras pessoas.
Contudo, às vezes é estranho como nos lembramos de coisas tão insignificantes, tipo a lista de chamada da turma da 5ª série, mas não conseguimos lembrar do nome da professora. Como não lembramos dos detalhes de quando a casa alagou há 5 anos, mas conseguimos lembrar do dia que fomos ao parquinho com os colegas de turma, há mais de 20 anos, quando tínhamos 5 anos de idade. Curioso, não?
Isso me lembra de Divertida Mente, filme da Disney Pixar que usa de metáforas para explicar como o cérebro humano funciona, sendo uma maneira divertida de aprender sobre as emoções e sobre como lidar com determinadas demandas emocionais.
No filme, além das emoções, o esquecimento também é retratado. A ilha das memórias abriga uma infinidade de momentos da vida da personagem e, em algumas cenas, operários apagam as memórias que não tem mais uso, que não são exercidas ou ativadas.
Ao ler Malcolm, que nos deixou esse livro cheio de encantamentos sobre as suas próprias memórias, as quais muitas vezes a gente nem consegue entender porque eram tão importantes para ela, criamos um paralelo entre o livro e o filme.
Conseguimos, também, estreitar paralelos com a nossa própria vida, porque sabemos que igualmente recordamos de coisas aleatórias que talvez só façam sentido para nós mesmos. Aí podemos até pensar que não podemos entender mesmo algumas coisas que ela relata, com tanta definição, porque elas não são nossas. Não vivemos o que ela viveu, não ouvimos o que ela ouviu, não estivemos nos lugares em que ela esteve nem no mesmo tempo em que ela viveu…
Memória, no fim, é mesmo um negócio muito louco e as retratadas no livro são ativadas pelas imagens que ela coloca. Entendemos sobre o que ela fala nos textos porque ela também ilustra com essas fotos da época, imagens granuladas e antigas, mas que nos atraem pelas narrativas e pelos detalhes que fazem as histórias ganharem ainda mais sentido, quando a autora cita as roupas, as cenas, as pessoas, os lugares, a vizinhança…
Ela diz que “sabemos tanta coisa que não sabemos que sabemos sobre os outros” e eu concordo! Analisamos outras pessoas, através das roupas, dos comportamentos, das palavras, dos gestos. Através, inclusive, das imagens e informações divulgadas, se pensarmos nos dias de hoje e nas redes sociais… A verdade é que, quando percebemos, estamos tentando adivinhar sobre o que se trata a foto do capítulo antes mesmo de ler o título e o texto que vem adiante.
Em um trecho localizado mais para o meio do livro, ela diz que tinham o costume de tomar sopas Campbell’s em casa. Nesse tempo, a marca ainda não era associada a Andy Warhol. Isso nos desperta curiosidade porque, atualmente, o nosso imaginário tem dificuldade em não associar a marca ao artista. Aqui, podemos entender sobre a dinâmica familiar dela, mas mais do que isso, entendemos sobre como a nossa memória registrou as latas de sopa às obras de Warhol.
O que me deixa mais intrigada sobre a memória é que estão ligadas ao que sentimos. Acredito que a memória seja território dos sentimentos, sejam eles bons ou ruins. Novamente: esse lance de memória é mesmo muito louco.
No livro, ao falar sobre costumes familiares, da vida dos pais, da própria infância, a autora diz que “a memória tem um atavismo voluntarioso”. A gente vive porque outras pessoas viveram e lembramos não só do que vivemos, mas do que os outros viveram também. A história de cada um de nós acontece e é marcada pela história de outras pessoas. A gente deturpa os acontecimentos, reconta as coisas do nosso jeito, do jeito que os acontecimentos marcaram a nossa vida, do jeito que conseguimos lembrar, do jeito que sentimos.
O que pode ajudar a bancar e a contar essas memórias, servindo como registro palpável do que existe na mente e no coração, são as fotografias. Revivemos muitas histórias através delas, assim como Janet Malcolm, mas não só isso: também voltamos a sentir um bando de coisas que fazem parte da construção dessas memórias. Aquilo que marcou a gente, de certa forma, ao longo da vida, sempre fica.
*Giovana Devisate é historiadora da arte e designer de moda

