
Assim seguia rumo a Aparecida o ônibus dos romeiros. CRÉDITOS: Divulgação
Getting your Trinity Audio player ready...
|
07-04-2025 às 08h38
Caio Brandão*
Era cedo, muito cedo e o sol, acanhado, fazia discreta presença na Praça do Correio, em Afogados da Ingazeira, no Vale do Pajeú, em Pernambuco. A cidade congrega muitos crentes, católicos, umbandistas e praticantes de cultos e religiões diversos, mercê, dentre outras, da influência conciliadora da Diocese de Afogados e da Catedral de Bom Jesus dos Remédios, marcos católicos da cidade, que enriquecem a sua cultura, emolduram as tradições locais e promovem a harmonia do lugar, sem considerar a natureza da fé das pessoas.
O movimento no local estava agitado, com passantes apressados subindo a rua Barão de Lucena, em direção à praça, onde se encontrava estacionado um ônibus antigo e de boa presença, da década de 60, conhecido como “Fenemê”, oriundo da extinta Fábrica Nacional de Motores, pioneira no país. O ônibus foi restaurado e pertencia a comerciante residente em Afogados, alugado por grupo de crentes, que se cotizou ao longo do ano, para viajar em peregrinação à cidade de Aparecida, no Vale do Paraíba, em São Paulo.
O dono era um tal de Aparício Fagundes, de apelido “Zé do Bode”, mecânico de profissão e autodidata, que morava pelos lados da Barragem dos Brotas. Aparício adaptou o ônibus para uso alternado entre diesel e gás natural veicular – gnv – mas, resolveu instalar, também, no porta-malas, quatro cilindros de gás de cozinha, de 45 quilos cada um, ampolas do conhecido gás liquefeito de petróleo, ou glp.
Um sucesso, segundo Fagundes, com o veículo esbanjando economia, aceleração despudorada e força sem igual, apesar de o sistema de frenagem ter ficado comprometido. Mas, isto era apenas detalhe, em face da robustez e da arrogância do bruto.
Por fora o ônibus era show, com quatro cores intercaladas, mediante figuras geométricas superpostas, sendo triângulo, retângulos e losangos, pintados de “verde militar”, “amarelo cheguei” e “vermelho pimentão”, cujos baldes de tintas foram comprados por Zé do Bode de um contrabandista, que operava em São José do Egito, que dista 30 quilômetros de Afogados.
Por dentro o Fenemê era primoroso, com recostos amigáveis e assentos macios cuja largura, de apenas 35 centímetros, contrariava a norma vigente que é de no mínimo 43 centímetros. Mas, isto, um pequeno senão, compensado pelo desconto de um por cento dado no preço da passagem, para a alegria dos viajantes.
A altura dos bancos em relação ao piso era sofrível, fazendo com que o passageiro viajasse namorando os joelhos, mas o lanche oferecido a bordo, o gastronômico e renomado “buchada de bode”, servido empratado e alojado sobre a dobra da perna, ficava à altura da boca, facilitando a degustação da refinada iguaria.
A viagem de Afogados a Aparecida seria longa. No total 34 horas de desconforto, sem contar as paradas para refeições e resolução de incômodos sentidos pelos passageiros, no tocante aos apelos mais agressivos da natureza, resolvidos em cumplicidade com a vegetação rasteira da caatinga.
Seriam 1.313 quilômetros de travessia pela paisagem árida e característica do sertão, ilustrada pela flora que ostenta, orgulhosa, o mandacaru, o xique-xique, os arbustos da espinhosa jurema e de outras tantas espécies festejadas pela diversidade das paisagens baianas.
No caminho, rumo ao Sul, a visão das montanhas mineiras, sempre exuberantes, com realce para nichos remanescentes da Mata Atlântica, que apontam para trechos de rodovia no Rio de Janeiro, com todos os sobressaltos que encerram, até chegar a São Paulo, com destaque para a sua pujança material e a visão, esplêndida, na cidade de Aparecida, do Santuário de Nossa Senhora.
Na noite anterior à partida traficantes oriundos do Rio de Janeiro, que se travestiam de empresários no bairro da Gávea, e que se encontravam foragidos e acoitados em bordéis de Afogados, introduziram no ônibus mercadoria procedente de Miami, via Recife. Longa distância, mas considerada segura em face das circunstâncias. A mercadoria percorreu 3.877 milhas náuticas, equivalentes a 7.180 quilômetros, trazida em navio com tradição de percurso regular para o transporte de drogas, armas, munições e imigrantes ilegais. De tão segura era a renomada travessia conhecida como rota de recreio, com banhos de sol, massagens e “open bar”, oferecidos aos seus tripulantes e seguranças.
No porta-bagagens do ônibus foram alojadas caixas com granadas de fragmentação, artefato de grande capacidade ofensiva e alto poder destrutivo; rente aos cilindros de gás de cozinha ficaram escondidos dois obuses de trajetória curva, para a eliminação de alvos escondidos atras de obstáculos, muito úteis na guerrilha urbana. As metralhadoras do tipo “ponto 30” foram desmontadas e ocultadas debaixo do ônibus, próximas dos feixes de molas da suspensão. São armas também poderosas, mas que utilizam munição comum, fáceis de serem contrabandeadas em carros de passeio na “tríplice fronteira” do Brasil, com o Paraguai, Uruguai e Argentina. As caixas de munição foram jogadas, simplesmente, no porão do ônibus, sem maiores cuidados.
A bagagem dos crentes era modesta, com destaque apenas para um crucifixo de madeira maciça, enorme e muito pesado, com o corpo de Jesus feito de gesso mal esculpido, com feições sombrias e olhos esbugalhados. No mais, apenas malas de roupas e objetos pessoais, afora um baú de cocaína colocado junto, à revelia dos crentes, para revenda aos romeiros em Aparecida e uma pequena valise contendo brinquedos sexuais e pomadas acolhedoras de excentricidades.
Os crentes dividiram as despesas com os traficantes, que a eles se apresentaram como devotos da Padroeira e responsáveis pela segurança dos romeiros na “Praça da Basílica Velha”, contratados que foram pela Santa Sé e mediante generosa remuneração, paga através de indulgências e promessas de benesses e privilégios no salão da vida eterna.
O motorista postou-se à porta do ônibus, recebeu os passageiros fazendo a contagem dos viajantes, subiu os degraus de acesso à boleia, curvou-se, em reverência, para as imagens de São Jorge Guerreiro, do Padre Cícero e do cangaceiro Lampião – que nasceu em Afogados da Ingazeira – coladas no para-brisas, acomodou-se e deu partida no motor da carruagem. E assim, seguiram adiante com os crentes alojados na primeira metade do ônibus, em oração, e os traficantes na parte de trás, fumando maconha e cheirando cocaína.
Na sua metade, na proa, os crentes entoavam hinos católicos, em louvor a Nossa Senhora, com devotos agarrados a rosários e quedados em êxtase convulsivo pela fé e amor exacerbados, enquanto na popa, na traseira do ônibus, nuvem de maconha, em combustão, turvava o cenário mirabolante. No palco do absurdo os figurantes distribuídos entre o grupo da maconha, que tocava pandeiro; a turma do haxixe, que tocava o surdo; o pessoal do crack, que tocava o tamborim e os adeptos da cocaína, que esgarçavam a cuíca.
Assim seguia rumo a Aparecida o ônibus dos romeiros, com vários deles tendo descido da proa e se incorporado ao batuque dos traficantes, uns no repique, outros no agogô, alguns no reco-reco, os tímidos no chocalho e os mais ousados na frigideira. Também não faltou o cavaquinho, seguido do apito, que uma devota soprava entumecendo as bochechas rosadas e as narinas se contraindo e expandindo-se em movimentos robustos e cavernosos.
Três dias depois, em Aparecida, Tinoco Cicatriz, líder dos traficantes, reclamava da demora da chegada do ônibus, dos comparsas e da mercadoria. Fez vigília na rodoviária e buscou informações na Cúria, sem sucesso. Ligou para a malandragem, no Nordeste, ao longo do trecho percorrido pela viatura, mas não teve notícias. Finalmente, recebeu de um parceiro, mensagem pelo celular, que escreveu:
- Estamos ferrados, Tinoco. O motorista entrou no embalo da companheirada e incorporou uma entidade, um preto velho, que não sabia dirigir. O ônibus caiu em ribanceira na Serra da Mangabeira, na Rio-Bahia e explodiu. As armas ficaram imprestáveis. O cristo desapareceu, milagrosamente, antes da queda. Os crentes se evadiram do local, levaram a cocaína que sobrou. Estão pedindo resgate para compensar o prejuízo. Mandaram dizer que não adianta reclamar com o bispo.”
* Caio Bandão é Advogado, Jornalista e Administrador de empresas. Na iniciativa privada atuou em multinacionais brasileiras e no setor público, além de conselheiro de bancos oficiais, foi responsável pela implantação do Projeto Jaíba II, o maior projeto de irrigação da América Latina, e presidente da Companhia de Saneamento do Paraná – SANEPAR – Atualmente é um diletante do Direito e dedica-se a causas relevantes e de interesse público. Contato: caio.brandao@uol.com.br