Teofrasto, por exemplo, na sua obra Caráteres, falava de pelo menos dois tipos de puxa-sacos, o adulador e o bajulador. A arte do primeiro consiste em fazer a vítima pensar que ela é amada por muitos, de preferência graças a ele (enquanto caminham juntos, o adulador aponta um grupo de amigos e diz, ao pé do ouvido da vítima: “ontem todos concordaram comigo que você é a pessoa mais maravilhosa que existe!”).
Marcelo Galuppo*
O primeiro livro em que Galileu tornou públicas suas observações astronômicas foi O mensageiro
das estrelas. Graças ao uso da luneta, ele observou pequenas luas em torno de Júpiter e, como foi o primeiro
a avistá-las, atribuiu-lhes o nome Estrelas dos Médici, família florentina cujo favor e proteção buscava (não
adiantou muito: tivesse permanecido no Vêneto e, provavelmente, teria tido menos problemas com a
Inquisição). René Descartes também dedicou suas Meditações ao deão da Universidade de Paris, na (vã)
esperança de que o livro não entrasse para o Index Librorum Prohibitorum (lista cujos livros a Igreja Católica
proibia que seus fiéis sequer dissessem que um dia os viram à venda, abolida em 1966, quando ler ambas as
obras deixou de ser algo com consequências eternas). Puxar o saco é uma arte, uma alternativa para quem
quer subir na vida sem possuir outros talentos, e conselhos sobre como exercê-la recheiam a história do
pensamento.
Teofrasto, por exemplo, na sua obra Caráteres, falava de pelo menos dois tipos de puxa-sacos, o
adulador e o bajulador. A arte do primeiro consiste em fazer a vítima pensar que ela é amada por muitos, de
preferência graças a ele (enquanto caminham juntos, o adulador aponta um grupo de amigos e diz, ao pé do
ouvido da vítima: “ontem todos concordaram comigo que você é a pessoa mais maravilhosa que existe!”). Se
o adulador é discreto, o bajulador é seu oposto: não consegue ficar calado e nem mesmo falar baixo, porque
quer mostrar entusiasticamente que admira a vítima mais do que todos.
Depois, veio Plutarco. Em Da maneira de distinguir o bajulador do amigo, ele diz que o puxa-saco
precisa fazer duas coisas: abster-se publicamente do que pertence à vítima e urdir intrigas contra outros. É
preciso recusar o que sua vítima lhe oferece (desde que, é claro, seja coisa de pequeno valor: nunca deve
tomar um café às suas custas) e aproveitar-se de todas as ocasiões para dizer que alguém está tramando
contra ela (de preferência se for mentira), pois é preciso mostrar-se um conselheiro útil e barato, mesmo que,
no fundo, seja uma raposa tentando apunhalá-la pelas costas. Para isso, o puxa-saco precisa ser maleável: se
o chefe é atleticano, ele também o é, mas se a ocasião se oferecer para puxar o saco de um chefe cruzeirense,
ele é cruzeirense desde o berço (daí em diante precisará manter uma agenda cuidadosa para nunca se reunir
com os dois ao mesmo tempo). Outra técnica consiste em demonstrar sinceridade desinteressada que
surpreende e cativa sua vítima (o puxa-saco critica sua vítima, mas começa sempre com a seguinte frase:
“Você sabe que eu sou sincero, e preciso falar uma coisa: estão falando mal de você” – na verdade, a crítica
vem sempre dele). Por outro lado, quando sua vítima possui vícios reais, o puxa-saco deve tratá-los como se
fossem virtudes (em lugar de repreendê-la por ser mesquinha, diz que a admira por ser econômica, e em vez
de lhe criticar a covardia, louva sua prudência).
Nesta arte, no entanto, ninguém se compara a Baldassare Castiglione, autor do clássico manual
renascentista da vida palaciana, O cortesão, para quem o puxa-saco deve agir como se os serviços prestados
fossem fáceis e naturais, como se não fosse algo pelo que esperasse retribuição. Chegará o momento em que
a retribuição virá sem ser pedida.
Também tenho conselhos para o futuro puxa-saco. Seu sucesso depende de ser visto como um
membro menos qualificado do grupo a que a vítima pertence: uma pessoa que serve café nunca será visto
como alguém do grupo de um ministro, mas um assessor pode sê-lo (é fundamental, no entanto, que, em
hipótese alguma, a vítima cogite a possibilidade de o puxa-saco assumir seu lugar: ele nunca deve se
apresentar como sendo tão útil, a ponto de ameaçar a vítima, nem tão inútil, a ponto de parecer
desnecessário). Além disso, ele nunca deve se mostrar abertamente subserviente. Nunca deve, por exemplo,
oferecer-se para carregar a pasta de seu chefe, ou abrir a porta de seu carro, quando haja alguém pago para
fazer isso, porque a vítima torna-se seu refém não pelo serviço, mas pelo afeto que o puxa-saco demonstra
ter por aquele a quem, de fato, inveja. Melhor do que abrir-lhe a porta é ficar acenando para ele até que seu
carro dobre a esquina. Criar dependência psicológica é o segredo da técnica.
1 Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG, e autor de vários livros, dentre eles #Um dia sem reclamar e #Um dia
sem odiar (esses em coautoria com Davi Lago) e de Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, todos pela Citadel.
Ser um puxa-saco não é garantia de sucesso, como mostram as histórias de Galileu e Descartes, mas
também não é garantia de sucesso não o ser. Cabe, pois, ao leitor decidir quanto de sua dignidade está
disposto a sacrificar para alcançar seus objetivos na louca corrida da ascensão social.