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Cadê o nosso outrora viçoso verde Brasil

Cadê o nosso outrora viçoso verde Brasil

O detalhe importante era exatamente aquele tom, pois não era novidade absoluta, já que o conhecia de outras viagens, cuja memória foi ativada para se associar àquela visão.

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21-09-2024 às 07h:09

Rogério Reis Devisate*

Era um voo do Pará para São Paulo.

Seria só mais um dentre centenas de voos se não fosse pela visão que despertou a atenção, conduzindo à desconfortáveis reflexões e fazendo com que fechasse o livro que lia.

O mapa na tela indicava que estávamos nas divisas do Pará com o Tocantins, quando, pela janela, via que o verde intenso das florestas e matas e plantações cedeu lugar a variações de um tom desbotado e amarelecido.

O detalhe importante era exatamente aquele tom, pois não era novidade absoluta, já que o conhecia de outras viagens, cuja memória foi ativada para se associar àquela visão. A questão é que aquela tonalidade “cor de palha” que, há anos, até utilizei no romance Diamantes no Sertão Garimpeiro, era velha conhecida das incursões que fiz em regiões de Cerrado ou Caatinga, em terras das regiões interioranas da Bahia, Minas Gerais, Tocantins, Sergipe, Pernambuco e Alagoas.

O inusitado era estar essa “cor de palha” nas áreas cobertas por densas matas do Norte.

Não sei o que é a explicação mais profunda para tudo isso, mas é crível que tem algo diferente ocorrendo, capaz de causar desconforto a quem testemunhe o quadro e nos fazendo relembrar frase do grande pensador espanhol José Ortega Y Garcez: “não sabemos o que nos acontece e é exatamente isso o que acontece”.

Além daquela monótona cena em tons desbotados também chamava a atenção a névoa estranha, exemplo da anomalia que tem levado fumaça densa e algo tóxica a São Paulo e outras regiões do País. Noticiam-se queimadas por todo o País e mesmo o leigo é capaz de perceber como isso tudo deve afetar as pessoas, os animais e vegetais, a microbiana vida que fertiliza o solo e tudo o mais que o fogo e a fumaça possam alcançar.

Na continental dimensão desse nosso imenso País, difícil é categorizar tudo isso apenas como fruto da ação de alguns incendiários ou piromaníacos que estejam pondo fogo por prazer ou a mando de qualquer alguém.

A coisa toda é tão mais opressora quanto mais se compreende a sua dimensão. O Rio Madeira, grande afluente do Rio Amazonas, está com cerca de 90 cm de profundidade em alguns trechos e o continua diminuindo. Como efeito dominó, essa coisa disruptiva vai se irradiando e, como é tributário do sistema do Rio Amazonas, este também será afetado. Logo as notícias a respeito transbordarão na mídia. Enquanto isso, estão previstas grandes chuvas no Deserto do Saara: 500% da precipitação normal.

Confesso preferir que a sensação que o instinto desperta fosse apenas fruto do discurso alarmista. Por mais que a razão seja indicativo seguro diante da ansiedade coletiva, a desconfortável sucessão de variações de imagens de seca e verde não viçoso, além da fumaça, por horas e horas de voo, em distância tão grande, é capaz de fazer a mente divagar e alcançar cenários desconfortáveis.

A propósito, enquanto tanto se fala em proteção da vida selvagem, noticia-se que o Zimbábue sacrificará 200 elefantes para alimentar a sua população mais vulnerável, vítima da grave e prolongada seca, seguindo o que já fez a Namíbia. São países permitindo o abate de animais selvagens diante da longa estiagem que afetou a produção de alimentos e potencializou a insegurança alimentar da população, acarretando a adoção dessas medidas extremas.

Caberia, então, a pergunta? O que fazer quando não tivermos mais elefantes? Matarão os hipopótamos? Depois, matarão as zebras e as girafas? Adiante, nos mataremos uns aos outros?

Isso tudo deve nos fazer refletir.

Precisamos proteger o meio ambiente e quem produz. Há relação intensa entre produção e meio ambiente saudável, pois ambos exigem água doce limpa e equilíbrio dos mecanismos de vento, sol e chuva, temperatura e umidade.

O meio ambiente e as cadeias de produção alimentar não sobrevivem com fatores artificiais que desnaturem a natureza. As pessoas precisam de água e comida e, com todas as tecnologias de que dispomos, mesmo tendo chegado à Lua, ainda não conseguimos nos alimentar e hidratar sem aquilo que o meio ambiente nos proporciona e as mãos dos produtores fazem chegar às nossas mesas.

É preciso uma visão unificadora para olhar adiante com foco e determinação, sem distrações que atrapalhem o nosso objetivo, porquanto há mudanças climáticas em curso – independentemente das causas – e as consequências podem ser mais desastrosas do que possamos perceber. Apesar das alterações climáticas e, sob o nosso foco, a seca, que faz aumentar os incêndios naturais e anuais, aqui e em outras partes do mundo (como na Califórnia e nas savanas africanas), ainda somos impotentes para controlar ou “mandar no mundo” e fazer chover e, assim, modificar o regime de chuvas, umidade e ventos. Acrescento que estamos num momento peculiar global e que a questão não envolve a rega de jardim doméstico.

Como numa espiral infinita, a seca mais intensa gradativamente atrairá mais queimadas e fumaça, diminuindo a produção de alimentos e aumentando a insegurança alimentar global e a fome, esse fantasma horroroso que é desconhecido das grandes massas do Ocidente moderno e que nos levará a buscar proteína animal nas fontes que se puder obter – como na África já ocorre, como falamos – e daí, gradativamente, até que, de ciclos em ciclos, as coisas cheguem a resultados que preferimos não considerar.

Os jardins da nossa flora nativa estão doentes e contaminando a todos com o seu choro e sofrimento. Não apenas daqui, mas em todo o mundo, não nos esquecendo do tanto que já se contaminou pela irradiação da usina nuclear de Chernobyl e a imensa área chamada Zone Rouge que, em França, está isolada desde a 1ª Guerra Mundial.

A visão que ensejou este artigo certamente teve os seus efeitos potencializados por estar voltando de dois importantes eventos internacionais conjuntos, no contexto da COP 30: o VI Congresso Internacional de Direito Amazônico e o XVI Congresso Mundial de Direito Agrário, nos quais atuei, como mediador e como conferencista, trazendo para casa, na minha bagagem mental, tantos pensamentos.

Aliás, proferindo palestra intitulada “Interesses estrangeiros na Amazônia e nas terras nacionais: aspectos e reflexões”, abordamos a insegurança alimentar decorrente da concentração de terras nas mãos de poucas gigantescas empresas globais. Os que vivem na terra e da terra amam-na, enquanto os grandes investidores globais não têm esse vínculo e apenas exploram-na. Por isso, nesse complexo jogo, vale a advertência de Jacques Généreux, quando escreveu: “E amanhã, quando o horror econômico e o horror político comparecerem ao encontro marcado por nosso imobilismo e nossos filhos perguntarem: vocês dormiram enquanto estavam de guarda? Pior, ainda, não dormiram, reconheceram o inimigo e não disseram nada, não fizeram nada? – o que responderemos?”

Que, como metáfora, isso tudo seja apenas a “fotografia” de um momento dramático. Que, ainda em metáfora, essa “fotografia” não seja substituída por “filme de longa metragem”, com os desdobramentos mais dramáticos desse mesmo enredo e final não feliz.

* Rogério Reis Devisate é advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ.  Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilos e Gafanhotos: Grilagem e Poder. Co-coordenador da obra Regularização Fundiária Experiências Regionais, publicada pelo Senado Federal.

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