
Brasil prepara para usar bio óleo SAF na aviação - créditos: Revista Fapesp
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15-06-2025 `09h29
Sebastiao Carlos Martins (*)
Em meio à urgência climática global, o Brasil vive um paradoxo: é uma potência em geração de resíduos sólidos urbanos (RSU) e tem um setor aéreo que precisa, com urgência, descarbonizar sua matriz energética. Entretanto, barreiras tributárias e a ausência de uma cultura robusta de gestão de riscos travam projetos que poderiam transformar RSU em SAF – Sustainable Aviation Fuel (Combustível Sustentável de Aviação).
Trata-se de uma solução alinhada aos compromissos ambientais, à economia circular e à segurança energética. Contudo, o avanço dessa tecnologia no país encontra entraves que, se não superados, poderão condenar o Brasil à dependência externa de combustível fóssil por mais décadas.
O Fracasso da Fulcrum e a Lição Ignorada
A Fulcrum BioEnergy, empresa norte-americana pioneira na produção de SAF a partir de RSU, prometia uma revolução energética. Baseava-se na combinação da gaseificação e pirólise com a síntese Fischer-Tropsch. O projeto, porém, colapsou.
Por quê?
- Falhas de engenharia e operação;
- Projeções de receitas superestimadas;
- Retirada de incentivos fiscais no meio do projeto;
- Mudanças nas políticas regulatórias nos EUA.
“Faltou análise de risco. Se a Fulcrum tivesse utilizado a Simulação de Monte Carlo, como fazemos na DBEST PLAN, teria identificado antecipadamente as fragilidades e mitigado os riscos operacionais e financeiros”, afirma o Eng. Sebastião Martins.
A grande lição é clara: nenhum projeto desse porte sobrevive sem modelagem rigorosa de riscos e sem segurança jurídica e fiscal.
A Guerra Tributária que Sabota a Sustentabilidade
A DBEST PLAN realizou um estudo comparando a viabilidade de uma unidade de produção de SAF processando 500 toneladas/dia de RSU, com:
- CAPEX: R$ 1 bilhão
- Produtividade: 140 litros de SAF/ton RSU
- Receitas: Energia (R$ 600/MWh), Gate Fee (R$ 120/ton RSU), SAF (R$ 9,00/litro), óleo bruto (R$ 4,50/litro) e crédito de carbono (R$ 90/ton CO₂)
Resultado:
- No Brasil: TIR anual de 22,29%, mesmo com ICMS (6%), ISS (3%), CSLL (9%), IRPJ (25%) e isenção de PIS/COFINS.
- No Paraguai: Com apenas IVA de 10%, a TIR sobe para 26,35%.
Se a produtividade aumentar para 160 litros/ton, a TIR no Brasil sobe para 24,32%, ainda inferior ao Paraguai, que oferece ambiente tributário mais competitivo.
Fato: A carga tributária brasileira sobre projetos de energia limpa chega a impressionantes 43%, tornando o país pouco atrativo frente aos vizinhos.
“Perdemos competitividade. É desestimulante ver um setor estratégico para a transição energética ser sufocado por impostos”, alerta Martins.
A Simulação de Monte Carlo: Pilar da Viabilidade
Sem gestão rigorosa de riscos, projetos de SAF podem fracassar, como ocorreu com a Fulcrum. A DBEST PLAN emprega a Simulação de Monte Carlo, que permite projetar milhares de cenários, considerando variáveis como:
- Preços do SAF e óleo bruto
- Produtividade operacional
- Flutuações do CAPEX
- Custos operacionais
Mesmo em um cenário extremamente desfavorável, com produtividade reduzida para 100 litros/ton (queda de 35%), o projeto analisado mantém uma TIR de 18,09%, superando a Taxa Mínima de Atratividade (TMA) de 18%, demonstrando alta resiliência.
Benefícios Ambientais, Econômicos e Logísticos
A produção regional de SAF junto aos principais aeroportos do Brasil traz impactos diretos:
- Elimina transporte rodoviário de longas distâncias, reduzindo custos e emissões;
- Desvia milhares de toneladas de RSU dos aterros, reduzindo geração de metano e chorume;
- Cumpre integralmente a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010);
- Gera empregos qualificados e promove desenvolvimento tecnológico e industrial.
“O principal ganho não é só o combustível, mas o fim da destinação inadequada dos RSU. Trata-se de uma obrigação ambiental convertida em oportunidade econômica e energética”, enfatiza Sebastião Martins.
Potencial Nacional: O Brasil Pode Virar o Jogo
- O Brasil gera 56 mil toneladas/dia de RSU nas regiões próximas aos principais aeroportos.
- Cada planta de 500 ton/dia exige investimento de R$ 1 bilhão.
- Seriam necessárias 112 plantas, totalizando R$ 112 bilhões em investimentos.
- Produção estimada: 2,613 bilhões de litros de SAF por ano.
Impacto Direto:
O país importa, hoje, cerca de 1,1 bilhão de litros/ano de QAV. Com a instalação de apenas 48 plantas de 500 ton/dia, o Brasil zeraria sua dependência externa de QAV, tornando-se imune a choques geopolíticos e oscilações internacionais.
As demais 64 plantas atenderiam o mercado interno adicional ou seriam dedicadas à exportação, melhorando a balança comercial e fortalecendo o parque industrial nacional.
Impacto Econômico, Ambiental e Social
- Redução massiva da destinação de lixo em aterros;
- Geração de centenas de empregos diretos e indiretos por planta;
- Indústria nacional fortalecida com inovação e tecnologia;
- Aumento da arrecadação municipal (ISS);
- Descarbonização efetiva do setor aéreo, em alinhamento com CORSIA e a Lei 14.993/2024.
Oportunidade Estratégica: Uma Escolha Nacional
A produção de SAF no Brasil é mais que uma possibilidade — é uma necessidade estratégica nacional. Seus benefícios são inequívocos:
- Independência energética do setor aéreo;
- Redução drástica de emissões;
- Fortalecimento da economia circular e da indústria verde;
- Estabilização dos custos operacionais das companhias aéreas;
- Inserção do Brasil como líder mundial na produção de biocombustíveis avançados.
A Urgência de Ação dos Governos
Se o Brasil quer, de fato, assumir protagonismo na transição energética, é imperativo que:
- Adote, como exigência, a Simulação de Monte Carlo em todos os projetos de energia limpa;
- Implemente incentivos e isenções tributárias para SAF, replicando o modelo já aplicado às energias solar e eólica;
- Inclua o SAF nos programas estratégicos, como PAC, PPI e nas metas de descarbonização da aviação;
- Fortaleça políticas públicas de incentivo à economia circular e à redução dos resíduos urbanos.
Tendo em vista a relevância da produção de SAF por meio da gaseificação dos resíduos sólidos urbanos (RSU), é fundamental que o Governo inclua essas Unidades de Recuperação de Energia (URE) no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A inclusão no PAC possibilita a redução de diversos tributos, incluindo a isenção de IPI, que, isoladamente, proporciona uma redução de aproximadamente 8,82% nos custos de equipamentos e insumos.
Como consequência, o CAPEX estimado reduz-se para R$ 911,80 milhões, viabilizando uma Taxa Interna de Retorno (TIR) anual de 24,32% e um payback de 6,42 anos, considerando um prazo de 2 anos para a construção da URE.
Esses incentivos fiscais são essenciais para viabilizar economicamente grandes projetos, pois reduzem significativamente os custos de implantação e estimulam o investimento no setor.
Conclusão
O Brasil tem diante de si uma oportunidade rara e estratégica: transformar lixo em combustível sustentável, gerar empregos, descarbonizar a economia e reduzir sua vulnerabilidade externa.
Faltam, porém, dois ingredientes essenciais:
- Coragem política para enfrentar o manicômio tributário nacional;
- Rigor técnico na avaliação de riscos e viabilidade econômica dos projetos
“Não podemos, mais uma vez, perder essa chance histórica. A hora de agir é agora”, Sebastião Carlos Martins
(*) Sebastião Carlos Martins é engenheiro, professor, pesquisador, consultor e autor de diversos projetos de sustentabilidade relevantes no Brasil
