
Segurança pública brasileira, uma constante preocupação para os especialistas da área - créditos: divulgação
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16-03-2025 às 08h00
Amauri Meireles (*)
Na área da segurança pública (expressão atualmente utilizada guardando equivocada sinonímia com, apenas, a contenção da criminalidade), além do impactante aumento do nível de insegurança – objetiva e subjetiva –, há, nos bastidores, questões semânticas, sistêmicas, epistemológicas, doutrinárias, jurídicas, etc., que não estão suficientemente claras nem consolidadas.
Para alguns pesquisadores, essa clarificação não é importante, não é prioritária, pois a população “quer é segurança”, quando, na verdade, o povo quer proteção qualificada, para que a vida seja vivida no utópico – mas perseguido – ambiente de segurança. Conceituação dúbia e/ou inadequada e figuras de linguagem utilizadas erroneamente influenciam negativamente na fixação de políticas, na elaboração de planos e nos resultados de ações e operações de proteção de nossa sociedade, fatores causadores da ausência de sintonia, sinergia e sincronia.
Felizmente, após o MEC reconhecer o gênero Ciências Policiais como área do conhecimento, muitas “noções” estão sendo trocadas por “convicções”. A par de pesquisas e pesquisadores se avolumarem com efetividade, o fortalecimento da espécie Policiologia – ciência que produz e divulga a essência doutrinária (legislação, terminologia, conceituação) de Polícia – tem ensejado correções e inovações doutrinais.
Especificamente, quanto ao aspecto jurídico, a Tese 656, do STF, fixada em 20 de fevereiro, p.p., trouxe luz a muitos pontos: “É constitucional, no âmbito dos municípios, o exercício de ações de segurança urbana pelas Guardas Municipais, inclusive policiamento ostensivo e comunitário, respeitadas as atribuições dos demais órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição Federal e excluída qualquer atividade de polícia judiciária, sendo submetidas ao controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, nos termos do artigo 129, inciso VII, da CF. Conforme o art. 144, § 8º, da Constituição Federal, as leis municipais devem observar as normas gerais fixadas pelo Congresso Nacional.”
Em agosto de 2023, por decisão majoritária, tomada no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 995, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) já firmara entendimento de que as guardas municipais integram o Sistema de Segurança Pública. Porém, alguns magistrados enxergavam restrição quanto ao fato de as Guardas Municipais não serem consideradas instituições policiais. Agora, com a Tese 656, do STF, fica cristalino que as Guardas Municipais são instituições policiais e que fazem policiamento ostensivo e comunitário.
Ainda, sobre isso, inclusive, tramita, na Câmara dos Deputados, Proposta de Emenda à Constituição nº 57, de 2023, que dispõe sobre a “Polícia Municipal”:
“§ 8º Os Municípios poderão constituir polícias municipais para o policiamento preventivo e comunitário, preservação da ordem pública, proteção de seus bens, serviços, instalações, logradouros públicos e das suas populações, conforme dispuser a lei, observadas as seguintes disposições: I – as guardas municipais legalmente instituídas passam a utilizar o nome de polícias municipais;”.
Melhor seria:
“§8º O Município poderá constituir órgão específico para o policiamento preventivo e comunitário …”;
O inciso I deve ser cancelado, por impropriedade terminológica, visto que Polícia Municipal é o conjunto de instituições que realizam atividade policial no município: polícia ambiental, polícia fazendária, polícia sanitária, polícia de trânsito, de edificações, de posturas municipais, etc.
Significa dizer que a Guarda Municipal (ou outro nome que venha a ter) é um órgão policial que realiza especificamente ações e operações de policiamento ostensivo e comunitário (ainda que discutível o neologismo criado, pelo STF, por aglutinação de coisas distintas).
Certamente, ocorrerão novos debates, buscando definição se será realizado “policiamento preventivo e comunitário”, conforme anotado na proposta, ou “policiamento ostensivo e comunitário”, de acordo com a Tese 656 do STF.
Particularmente, entendo que o proposto para o § 8º deveria ser:
“§8º O Município poderá constituir órgão específico para o policiamento ostensivo, uniformizado, …”.
Para consolidar esse entendimento, é extremamente importante entender-se o que é Polícia. Há várias conceituações, algumas defasadas, inadequadas, insuficientes, outras começando a consolidar-se. Uma delas é, conforme a Policiologia: “Polícia é atividade estatal de Proteção Social, desenvolvida por Instituições específicas através de Poder de Polícia ou Força de Polícia, visando a mantença da Ordem na sociedade”. Assim, é possível inferir-se que a Guarda Municipal é uma dessas instituições policiais, ou seja, realiza atividade policial no município, devendo ser considerada uma das várias instituições que compõem o sistema policial municipal, vale dizer, integra (diferente de “ser”) a Polícia Municipal.
Conforme afirmou, de forma pragmática, o presidente da Associação Nacional das Guardas Municipais (AGM Brasil), Reinaldo Monteiro, em recente e qualificado debate, promovido pelo Instituto Brasileiro de Segurança Pública (IBSP), a hora é de se fixar protocolos, estabelecendo, no mínimo, quem faz o que, como, quando e onde.
Quero crer que o indicativo que vai orientar a particularização dessas ações é a Ordem e suas variações ou gradações (normalidade, alteração, perturbação e grave perturbação da ordem social e, na sequência, grave perturbação e muito grave perturbação da ordem).
Quais são os procedimentos atuais e quais serão os futuros (com a Guarda Municipal realizando policiamento ostensivo, uniformizado) evitando-se superposições, desperdício de recursos, conflitos de competências e afins?
Atualmente, a instituição denominada Polícia Militar – uma das Polícias Ostensivas – realiza específicas ações e operações de policiamento, que vão justapondo-se, na medida em que ocorre uma variação da Ordem. Em casos de Normalidade, Alteração e Perturbação da Ordem Social, realiza Operações de Policiamento Ostensivo, fardado, Operações de Policiamento Velado e Operações de Ações Cívico-Sociais. Na medida em que o quadro de Perturbação da Ordem Social tende a transformar-se em Grave Perturbação da Ordem Social, as três citadas operações continuam e têm início as Operações de Choque. Instalado o quadro de Grave Perturbação da Ordem Social (que, dependendo da ampliação do tipo da atividade adversa, pode ser visto como uma situação de Perturbação da Ordem), as quatro já citadas operações continuam e são lançadas as Operações de Restauração. Evoluindo a situação para Grave Perturbação da Ordem, as ações são de Defesa Interna e são conduzidas pela União.
No caso, as Polícias Militares realizarão uma ou várias operações que lhe são peculiares, em atividades específicas de Forças Auxiliares do Exército brasileiro (diferente de atuar como reserva, visto que não está qualificada para isso, ou seja, não está apta a substituir o titular).
Nos tempos atuais, os governos estaduais têm recebido reforços da Força Nacional de Segurança Pública (a pedido de governadores) quando a situação de Perturbação da Ordem Social se aproxima da Grave Perturbação da Ordem Social (ou quando ela se instala), quando não é decretada, açodadamente, a operação de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) realizada pelas Forças Armadas.
Com o recrudescimento da criminalidade violenta, do crime organizado e o reconhecimento das Guardas Municipais como órgãos policiais, órgãos que realizam atividades policiais, seria oportuno que atendessem ocorrências enquadradas na situação de pré-Perturbação da Ordem Social. Necessitando de uma análise mais acurada, em princípio seriam as denominadas de atenção primária ou de menor potencial ofensivo, tais que Lesão corporal leve, Calúnia, Difamação, Ameaça Perturbação do sossego Rixa, Furto simples, Violação de domicílio, Dano, Ocorrências de trânsito (com ou sem vítima), Resistência, Desobediência, etc. Se as Guardas Municipais, por questões administrativas ou logísticas, não estiverem em condições fazê-lo, citadas ocorrências deverão ser atendidas pelas Polícias Militares.
Ao final, convém lembrar que Policiamento Comunitário tem como objetivo a Interação Comunitária, visando a lhe oferecer proteção básica, elementar. Assim sendo, o emprego de força, no policiamento ostensivo, uniformizado, que as Guardas Municipais estão legalmente autorizadas a realizar, deve ter caráter de excepcional eventualidade, visto que não têm respaldo legal para realização de Operações de Choque e de Operações de Restauração.
(*) Amauri Meireles é coronel Veterano da Polícia Militar de Minas Gerais. Foi Comandante da Região Metropolitana de Belo Horizonte