
Ao longo da década de oitenta, fui um grande frequentador do Mineirão, em Belo Horizonte, aonde ia assistir, normalmente aos domingos. CRÉDITOS: Divulgação
07-03-2025 às 08h58
Henrique German*
Ao longo da década de oitenta, fui um grande frequentador do Mineirão, em Belo Horizonte, aonde ia assistir, normalmente aos domingos, às partidas de futebol do Atlético Mineiro.
Vale notar que não gostava, especialmente, nem do esporte nem do time, porém era um bom programa para as tardes mortas de domingo, quando eram mortas, e eu tinha vontade de sair de casa.
A caminho do estádio, nos ônibus especiais, separados pelo poder público municipal para o transporte de torcedores, habitualmente partindo da rua dos Guaicurus, na zona boêmia, já começava a diversão perversa, com cantos e gritos de guerra e destruição do patrimônio, com a quebra de partes dos veículos, como janelas, bancos e roletas. Poucos, muito poucos eram os que pagávamos pelas passagens, compadecidos dos cobradores aterrados.
A selvageria que imperava na ida aos jogos não era diferente daquela da volta, quando, em ônibus lotados de torcedores ferozes, sujos e cansados, felizes ou tristes, dependendo do resultado da partida, era preciso tornar ao centro da cidade.
Nas viagens de volta, vale a pena sublinhar o momento da subida ao ônibus, que, em regra, dava-se com o veículo já em movimento, deixando o ponto, pleno de gente, com as portas pneumáticas fechadas; a técnica então utilizada era simples: saltar contra as duplas portas cerradas, com o ombro ou o peito, abrindo-as a mugue. Normalmente, as portas cediam facilmente, e um ou outro indivíduo, ali próximo, dava um passo adiante, e o invasor entrava, sem maiores problemas, acomodando-se, por sua vez, encostado às portas, agora, novamente fechadas.
Eu, pessoalmente, fiz, muitas vezes, uso da técnica heterodoxa de embarque nos ônibus abarrotados, sempre com sucesso, até que, certa tarde-noite, após um clássico Atlético e Cruzeiro, as coisas mudaram. De fato, para tudo, há sempre uma primeira vez.
Depois do jogo, em uma pesada atmosfera de rivalidade mesclada com ódio entre as duas torcidas, logo percebi que seria conveniente ir embora bem depressa, o mais rápido possível, porque a tensão no ar era tão alta que se podia cortá-la a faca. Corri em direção a um dos ônibus que partiam, todos repletos de gente que gritava e arrancava os vidros às janelas; bati o peito às portas traseiras, em um bom salto, e aqui merece ser registrado que eu era um jovem muito forte. As portas não se moveram, sequer, um só milímetro, para grande espanto meu. Ao invés de saltar de volta à rua, preferi me agarrar ali mesmo, viajando fora do veículo, equilibrado sobre uns dez centímetros, talvez, de piso do ônibus, que escapavam, estreitos, por debaixo das portas.
O ônibus seguia devagar, felizmente, e eu, equilibrando-me de modo precário, olhava para o estádio, que ficava para trás, atento à eventual aproximação de torcedores hostis, vestidos em azul. De repente, do lado contrário para o qual eu me voltara, veio uma mão forte, que me agarrou pelo queixo e pela boca, como se me quisesse tapá-la, puxando-me para fora do ônibus, arrancando-me dele, melhor dizendo.
Eu não caí, como seria de se esperar, porque a tal mão, em momento algum me largara, ao contrário, em movimento único, tirara-me do ônibus e me puxara de encontro a uma coisa suada e peluda, que logo percebi, sem ver, tratar-se do pescoço de um cavalo. Eram cavalarianos da Polícia Militar. Sem demora, sempre seguro pela mão possante, com a cara amassada no pescoço suado do equino, ouvi:
— Você não sabe que não pode andar pendurado no ônibus? — Perguntou-me uma voz de homem, que não era de muitos amigos.
Ciente da situação, respondi, com imensa humildade, mastigando pelos, que errara, que estava muito arrependido e jamais faria coisa semelhante outra vez.
Por sorte, o militar teve pena, soltou-me e me deixou ir. Desci a avenida, costeando a UFMG, entrei na avenida Antônio Carlos e subi, depressa, até quase à portaria da universidade, ali, onde havia um ponto de ônibus. A rua estava deserta, digo, sem pedestres, somente carros e ônibus passavam, velozes, buzinando sem parar, em enorme algazarra. Já escurecera completamente, e eu me encontrava sozinho, no ponto.
Prevenido, velho conhecedor do Mineirão, tirei a camisa do Atlético que vestia, enrolando-a e enfiando-a à cintura, por dentro da calça, a fim de evitar chamar a atenção de eventuais cruzeirenses e, consequentemente, uma agressão.
O tempo passava, o ônibus, contudo, não. Quando eu já considerava a hipótese de ir-me embora a pé, calculando quanto tempo levaria a caminhada até o Gutierrez, notei que três rapazes subiam a avenida Antônio Carlos, vindo em minha direção. Como não tinha para onde ir nem lugar para abrigar-me, coloquei-me em alerta máximo, pronto para o que desse e viesse. Observei, ainda de longe, que um deles carregava alguma coisa, uma bandeira, talvez.
Quando eles se aproximaram o suficiente para eu ver que se tratavam de atleticanos, membros de certa torcida organizada, relaxei, pensando que estaria seguro. Não dei mais atenção aos homens e voltei a olhar para o tráfego, à espera de um ônibus que me conduzisse ao Centro.
De súbito, com surpresa, percebi que me puxavam, por trás, a camisa enfiada nas calças; naquela fração de segundo, sem pensar, instintivamente segurei a camisa, puxando-a de volta. Recebi, não sei de onde, um golpe forte na cabeça, o qual me fez largar a camisa, e o rapaz que a puxava correu com ela, afastando-se como um raio. Um segundo homem também correu, acompanhando o primeiro. Quando dei por mim, o terceiro elemento, que portava um pedaço de pau, não uma bandeira, investia uma segunda vez contra mim, tentando acertar-me, novamente, a cabeça.
Miraculosamente, esquivei-me do ataque, colando-me, em seguida, de um pulo, ao agressor, para tirar-lhe o espaço de manobra com o pau. O desgraçado era forte como o diabo e também brigava como o próprio, tendo me machucado bastante. Eu, de minha parte, digamos assim, arranquei dele o meu pedaço. Porém, reconheço, ele levou a melhor, embora não sem lembranças minhas.
*Henrique German é Escritor