
Itamar Franco e Tancredo Neves, dois expoentes políticos de Minas Gerais - créditos: Estadão
04-03-2025 às 09h00
Caio Brandão (*)
Itamar Franco acordou sobressaltado de sono hipnótico cavernoso, a que foi submetido por tempo demasiado. Tancredo Neves estava ao seu lado, vigilante, para recepcioná-lo no Umbral. Itamar olhou para Tancredo, assustado e perguntou:
– Você é o Bruce Willis?
– Quem dera, respondeu Tancredo, porque ele ainda está vivo e nós não.
– Estou no céu? quis saber Itamar e emendou indagando se Tancredo era o Arcanjo Gabriel. Ele estava muito confuso.
– Não, meu caro, você está num ambulatório de trânsito, para avaliação psicológica, e eu sou apenas um desencarnado calvo e pálido, aguardando designação de tarefas, enquanto presto serviço como enfermeiro, informou Tancredo, a balançar enorme seringa, que acoplava em seu bico uma cânula avantajada.
– Nas nádegas ou no braço? perguntou Tancredo.
– Não sei do que se trata esse líquido incolor, mas pode aplicá-lo nas nádegas, na esquerda, por favor, porque ela tem perfil mais amigável e é mais carnuda, disse Itamar.
Tancredo tinha toque suave, como suaves, mas penetrantes, eram as suas palavras no trato cotidiano da política. Itamar perguntou-lhe sobre reencarnações. Tancredo disse que a sua penúltima foi em Roma. Ele era o senador Cáio Salústio Crispo, alçado ao senado como sufecto, um pequeno favor para o padrasto do Imperador Nero.
– Gostei da referência ao Nero, disse Itamar, porque eu sempre quis incendiar Brasília e quase consegui. Só abandonei esse intento porque o meu governo começou a dar certo, com o Plano Real, arquitetado pelo Fernando Henrique, com o Pérsio Arida e o Lara Resende.
– E, quanto a mim, Tancredo, tem alguma informação de vida passada?
– Sim, Itamar, respondeu Tancredo, franzindo a testa, existe uma anotação nos arquivos deste departamento. Você não se lembra, mas na sua entrevista de admissão no Umbral, declarou que esteve no Terreiro de Umbanda de Mãe Aurinha, em Salvador, na rua das Pedrinhas, e lá ficou sabendo, pela Vovó Maria Conga, da sua encarnação como primeiro bailarino do Ballet Bolshoi. A informação é precária, mas está sendo averiguada no plano Terra, pelos nossos colaboradores expedicionários; contudo, você não deve levar isto à sério.
– Caramba, disse Itamar, bem que eu tenho uma pequena calosidade de nascença, no dedinho do pé esquerdo, que sempre balança ao som do Congado de Uberaba.
– Tancredo, nós nunca nos demos bem na política. Então, por que você está me apoiando?
– Estou resgatando dívidas “kármicas,”, disse Tancredo. Obrigação exigida pelo protocolo de regeneração espiritual. Para ser franco e sem trocadilho, Itamar, eu nunca gostei de você. Digo isto, porque neste lugar não é permitido mentir. Sempre o critiquei por guardar rancor na geladeira, aqui vamos ter que conviver.
– O sentimento era mútuo, disse Itamar, que também estocava críticas a Tancredo, e que foi o último a apoiar a sua candidatura à presidência do Brasil, quando Tancredo sucedeu ao general Figueiredo.
– Na minha opinião, Tancredo, a sua presença na política era mais voltada para a prática do sopro auricular, um fofoqueiro de escol, sem projeto e preocupado em fazer discursos rebuscados, cheios de rococós e de raso conteúdo”.
– Não exagere, Itamar, porque sofri muita influência da minha vida passada, encarnado como Caio Salústio, que narrou com maestria e riqueza de detalhes a Conjuração de Catilina.
– Isso, mesmo, disse Itamar, você sempre gostou de fofocas e traições, como essa, do senador Catilina, que terminou em massacre pela espada das forças romanas.
– Coincidentemente, prosseguiu Tancredo, você, Itamar, também foi sulfecto, porque concluiu o mandato do Collor, aquele trapalhão.
– Opa! Estamos sendo chamados ao Salão da Identidade, para receber crachás, exclamou Itamar.
No Salão da Identidade uma figura estranha, de traços indefinidos entregou-lhes crachás feitos de material pegajoso, onde se lia: Espírito em Trânsito. Junto ao crachá um manual de procedimentos. Itamar, passando à frente, perguntou sobre alojamento e refeições.
– Estamos com problema de moradia, ponderou a entidade, porque o Umbral está recebendo milhares de desencarnados, vindos dos conflitos tribais na África, e dos combates na Palestina e na Ucrânia. Os senhores podem alugar uma “kitnet”, se tiverem moedas cósmicas”.
– O que é isto? perguntou Tancredo.
– São créditos por méritos conquistados nas múltiplas reencarnações dos espíritos, quer no planeta Terra ou em outros rincões mais distantes da galáxia. As boas ações e pensamentos altruístas, meditação e jejum – particularmente a abstinência de práticas libidinosas -, sempre capturam essas moedas, que têm muito valor por aqui, inclusive no câmbio paralelo.
– Você tem alguma moeda, Tancredo?.
– Não, respondeu, enquanto procurava nos bolsos algum vintém para custear o aluguel.
– Nem eu, disse Itamar, concluindo, então vamos ter que nos acomodar na sarjeta”.
– Na sarjeta? Fácil para nós, meu caro Itamar. Nós sempre estivemos muito próximos dela, na trajetória política que empreendemos. Vimos de tudo, mas não interagimos. Não roubar é fácil, é decisão pessoal, de foro íntimo. O problema está em não deixar roubar, porque o nosso entorno se locupleta despudoradamente e, pior, diz que arrecada em nosso nome.
Já dizia Maquiavel que os príncipes, nunca sabem por quanto são vendidos. A solidão do poder nos deixa vulneráveis, Tancredo, porque somente nos dizem aquilo que queremos escutar. Mazelas à parte, temos algo em comum, porque sempre nos seduziu a vaidade e a mordomia, a liturgia dos cargos e o aplauso dos correligionários. Dinheiro mesmo, sonante, o poderoso “l’argent ”, para nós não tinha muita importância, porque o melhor era rosetar, não é mesmo?
– Sobre diversão, Itamar, você se deu bem naquele desfile de carnaval na Sapucaí, com aquela acompanhante sem calcinha. O fotógrafo de plantão fez o melhor flagrante de seu governo, o que elevou o seu prestígio em nível internacional, inclusive com testemunho inequívoco de explícita virilidade. Você a apalpou?
– Ah, meu amigo, a imprensa exagerou. Os adversários sempre sonharam destruir a nossa imagem, como, no seu caso, por ocasião daquele buchicho sobre uma secretária fidelíssima, que o acompanhou por décadas. E, mais, Tancredo, você teve problemas em família, com um descendente glutão, que dizem ter se valido do cargo para transbordar o embornal. Ele fez chover na horta com força e até a irmã ficou em dificuldades.
– Ora, Itamar, o homem público sempre padece de infortúnios dessa ordem, como foi o seu caso, quando a imprensa noticiou a morte de um possível drogado, membro de sua comitiva oficial, durante viagem diplomática empreendida à Colômbia. O caso ocorreu no Hotel Othon. Sabe em que apartamento ele estava hospedado? Foi enfarte, mesmo? Ademais, Itamar, ficou confusa aquela história da garota de programa, que frequentava o Palácio da Liberdade, e que, inclusive, esteve em seu gabinete e que, tempos depois, apareceu morta em um flat de apart-hotel, em Belo Horizonte. Felizmente o culpado confessou, foi preso e encarcerado. O caso caiu no esquecimento, mas a chapa esquentou por longo tempo. Muito incômoda aquela situação, concluiu Tancredo.
– Olha lá o Ulysses Guimarães. Aquele é o Ulysses? perguntou Itamar, ao atendente do Salão da Identidade.
– Sim, respondeu a entidade. Aquele espírito é um sofredor, porque morreu no mar, em acidente de helicóptero e os seus ossos ficaram dispersos. Pagou alto preço por gostar de pegar carona em aviões e helicópteros de pessoas abastadas. Gosto compartilhado por quase todos os políticos, e até por um ex-ministro do STF, que também morreu em acidente semelhante, mas de jatinho. Isto lhe traz recordações penosas e ele vem recebendo a atenção dos nossos atendentes, em expiação de profunda amargura.
– E aquele outro, mais adiante, perguntou Tancredo, é o Getúlio Vargas?
– Sim, coitado, ele ainda não se livrou dos estampidos que escuta, vindos da arma com que ceifou a própria vida. Pensou passar à história como mártir, em face do sacrifício em que se imolou, como passou, realmente, mas não ficou apenas nisso. A história continua nesta plaga, onde não há prazo para terminar. Getúlio vai permanecer por aqui em tratamento, por muito tempo e em intermináveis e dolorosas penitências.
– E na linha do horizonte, aquele clarão vermelho e alarido ensurdecedor, do que se trata?
– Ah, respondeu a entidade, aquele é o Salão do Arrependimento, para onde vão os espíritos devedores, que têm “karma” a resgatar e dívidas de curto prazo a liquidar.
– E aquela figura hedionda, horrível, que caminha em nossa direção, quem é? perguntou Itamar.
– Aquela simpatia é o seu anfitrião, quem vai acomodá-los no Salão do Arrependimento, para uma temporada de reflexão e polimento espiritual.
– Dá para adiar essa estada? perguntou Tancredo.
– Pode ser, respondeu a entidade, mas só se vocês convencerem o Newton Cardoso, que acabou de chegar, a tomar o seu lugar. Façam bom proveito, porque vão encontrar muita gente conhecida por lá, inclusive o Juscelino Kubitscheck, que encantou o Mestre pela sua simpatia e carisma, por isso, ainda não sabemos o que fazer com ele. No caso do Juscelino, esta é a primeira vez, em que foi admitida a influência de “pistolão” no Além. O Kubitscheck, que ri com os olhos, é uma entidade encantadora.
(*) Caio Brandão é jornalista
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