
Juiz de Fora, zona da mata mineira - créditos: divulgação
01-03-2025 às 14h54
Wilson Cid (*)
Não obstante a dedicação de vários dos homens empenhados no estudo do passado de Juiz de Fora, e a eles é de justiça que se rendam todas as homenagens, há detalhes do nosso passado que se conservam misteriosos, só parcialmente conhecidos ou ficaram esquecidos em pesquisas inconclusas.
Para tanto, haverá de ter contribuído a descontinuidade, pela ausência de sucessores, do trabalho de Paulino de Oliveira, Albino Esteves, Luiz José Sterling, Almir de Oliveira, Jair Lessa, Sinval Santiago, Múcio de Abreu e Alexandre Delgado, este o que permaneceu mais tempo mergulhado nas pesquisas. Deveu-se a ele, parece questão passiva, a palavra final sobre a figura do juiz de fora, identificando-o como Luiz Forte Bustamante Sá.
Os nomes aqui citados são alguns entre os principais estudiosos, aos quais tanto devemos, quando procuramos puxar fios de uma intricada meada para ajustar dados e documentos esclarecedores. Lamentável admitir que se sobreponha a eles, nas três últimas décadas, o descaso acadêmico pelo estudo do passado local.
Quanto ao juiz de fora, principalmente, restam certas dúvidas, comprometendo a tarefa de quem se dispuser a traçar-lhe um perfil mais próximo da realidade. O que se sabe é que estamos diante de enigmático e insinuante aventureiro, que nestas paragens aportou, em circunstâncias até certo ponto suspeitas. Veio, isto é certo, não para o exercício de atividades ligadas à Justiça.
Nomeado, em março de 1711, por carta régia de Dom João V, esse fidalgo português desembarcou no Rio de Janeiro para servir como juiz de fora, segundo expressa determinação do soberano; isto é, um juiz de fora na sede da Corte, na cidade do Rio de Janeiro, e apenas ali. Demorou pouco para que esse Bustamante Sá se aventurasse em outras atividades, nada ortodoxas, comprometendo rapidamente sua imagem em Lisboa. Como provedor da Fazenda dos Defuntos e Ausentes, mostrou-se pouco cuidadoso com os cofres da instituição, deixando-os vazios… O que fez foi juntar aos seus poucos dinheiros os muitos dinheiros da Fazenda. Essa façanha, entre outras, terminaram por tornar irrespirável sua permanência na Corte.
Passados menos de dois anos após seu desembarque, vamos encontrá-lo com as bruacas no lombo de mulas tomando o rumo da Província de Minas. Percorrendo a margem esquerda do Rio Paraibuna, interessou-se pelos terrenos onde mais tarde surgiria o Bairro Vitorino Braga, e parece ter encontrado ali ares adequados para escapar dos incômodos da justiça da Corte.
Em documento confiável de 4 de setembro de 1713, ele aparece comprando de João de Oliveira, por um conto de reis, uma légua de terra, onde construiu, na atual avenida Garibaldi, a casa-fazenda que ficaria por isso mesmo, e apenas por isso, conhecida como fazenda do juiz de fora, função que aqui não exerceu. Mas, com toda certeza, era ali um ponto de parada dos viajantes para reabastecer as cargas e descanso de quem transitava de Ouro Preto e São João del-Rei rumo ao Rio de Janeiro. Tiradentes, incumbido de patrulhar o Caminho Novo, ali passou muitas vezes.
Bustamante foi proprietário dessa terra, ao menos, até 1728, provavelmente realizando algumas viagens à Corte, até porque já havia criado aqui alguns problemas com autoridades da Província, que chegaram a recomendar, em 1716, sua expulsão de Minas. Entre esses problemas, o que deve ter entornado a paciência do poder regional, foi o fato de, à frente de um bando de jagunços armados, ele ter invadido a propriedade de José de Souza Fragoso, na região de Marmelo, provavelmente por desentendimento na demarcação de terras. Conhecem-se os fatos, mas não foram localizados documentos suficientes, nascendo daí a suspeita de que se tratava também de um hábil escamoteador de papeis comprometedores.
Interessante é que expulso, perseguido, indesejável, “audacioso e autossuficiente”, segundo expressão do historiador Jair Lessa, esse juiz de fora não perdeu a imensa capacidade de insinuar-se e ocupar espaços.
Tomemos em conta que pouco após sua chegada ao Brasil vamos encontrá-lo em posição influente na comissão de portugueses e brasileiros negociando a retirada dos invasores franceses comandados pelo almirante Duguay Trouin. Parece ter exercido papel capital na defesa dos interesses e do apetite insaciável dos invasores, que deixaram o Rio arrasado, em situação de penúria. Para as condições de rendição e a retirada de seus navios da enseada da Guanabara, levaram muitos barris de azeites, carnes de 200 bois, 100 caixas de açúcar, 600 mil cruzados, joias, ouro e alguns escravos, numa depredação da qual nem valiosas imagens das igrejas escaparam. Mais do que os agressores podiam exigir nos termos de capitulação. Passados meses, relatando sua aventura bem-sucedida nas costas brasileiras, o corsário francês citaria os bons préstimos de Bustamante.
(Quase o agitado juiz de fora acabaria pagando caro seus descuidos com os interesses portugueses no Brasil. A justiça o condenou a desembolsar 400 mil reis de multa e a seis anos de degredo na África, o que só não aconteceu porque na véspera de o navio zarpar, ele subornou o carcereiro, e com ele fugiu, em mais uma aventura cinematográfica para compor sua biografia).
Estranhamos hoje, como estranharam os investigadores de nossa história, a escassez de documentos para instruir melhor a vida da singular figura do juiz de fora. Os papéis oficiais saltaram no tempo e só reatam alguns fios dessa meada em 1855, na comarca de São João del-Rei, quando descendentes reclamavam partilha de bens de herança.
Restou, portanto, algo de misterioso sobre essa personalidade, de passagem meteórica e fugaz, mas perpetuada como nome de uma grande cidade.
Um novo nome
Graças à biografia de quem haveríamos de herdar o nome da cidade, uma escolha que se deveu em 1850 ao Barão de São Marcelino, na Assembleia Mineira, nunca deixou de existir quem o considerasse desagradável. Ou por soar mal esse “de fora”, como algo que sugere ausência ou exclusão, ou porque estão ausentes méritos de quem ficou como patrono nomenclatural.
Além do mais, como se disse, esse Bustamante Sá tinha um cargo que jamais exerceu nestas paragens. Assim, sempre houve os que, mais incomodados, recomendassem a escolha de um novo nome para esta terra, sem ignorar que, se é trabalhoso mudar a identidade de uma simples rua, quanto mais de uma cidade inteira.
No Instituto Histórico e Geográfico, um ardoroso defensor da mudança, professor Oswaldo Pereira, propôs, na década de 60, que se levasse a questão a um plebiscito, no qual os juiz-foranos optariam entre três sugestões. Em seguida, com base na escolha majoritária, seriam tomadas as providências cabíveis junto ao governo estadual.
As sugestões para um novo nome, que não prosperaram, eram as seguintes:
1) Cidade de São Tomé, como homenagem ao Alcaide-Mor Tomé Correia de Souza, que para alguns historiadores foi o verdadeiro responsável pela ocupação do vale em que vivemos, e que ergueu a alcaidaria, primeiro prédio da região, na avenida Alencar Tristão, hoje sob permanente ameaça de se tornar ruína, por falta de conservação da parte da proprietária, a Santa Casa.
2) segundo outra sugestão, a cidade passaria a se chamar Santo Antônio do Parahybuna, aliás, seria apenas a retomada do nome original.
3) uma terceira possibilidade aventada seria substituir Juiz de Fora por Inconfidente Vidal, em memória de juiz-forano Domingos Vidal, companheiro de Tiradentes na fracassada Inconfidência.
O assunto, como se sabe, teve o destino do esquecimento, só raramente lembrado. Por volta de 1985, foi igualmente desconsiderada a proposta do professor Romeu Viana, presidente da Academia de Letras, que achava horroroso o “juiz de fora”. Mas, sem grande progresso, pelo menos quanto à sonoridade, queria que a cidade passasse a se chamar Halfeldlândia, em homenagem ao alemão oficialmente tido como fundador de Juiz de Fora.
O professor Vianna havia se dedicado, com grande entusiasmo, a outras mudanças. Antes, sugerira novos versos para o Hino Nacional, sem que para tanto sensibilizasse a Câmara dos Deputados, sendo igualmente desconsiderado por historiadores, musicólogos e pelo ardor de patriotas, que têm o Hino como algo intocável. Não abatido em sua campanha reformista, ele conseguiu que os vereadores aprovassem versos de sua autoria para substituir os versos de Lindolfo Gomes no Hino Oficial da cidade. O então prefeito, Tarcísio Delgado, vetou a lei integralmente.
(*) Wilson Cid é jornalista