O soldado da vez chegou para assumir o posto e ao espiar da janela levou baita susto ao ver algo estranho, da cor verde brilhando sobre a máquina de datilografia.
21-12-2024 às 15h45
Alberto Sena*
O ambiente era de reformatório para menores considerados delinquentes. Lugar austero, administrado sob regime quase militar, o reformatório ficava a oito quilômetros da próspera cidade de Sete Lagoas (MG), em lugar ermo, a 77 quilômetros da capital mineira, Belo Horizonte. Era um prédio grande e porque concentrava muitos jovens havia a necessidade de um destacamento policial composto por cabo e dois soldados da Polícia Militar a fim de garantir a segurança do lugar.
Efigênio era o nome do cabo comandante. Homem fleumático, parrudo, de estatura mediana, acostumado a dar ordens. Boa praça, diziam ser ele, mas, ai de quem pisasse o calo dele. Havia acabado de almoçar e se dirigiu ao alojamento naquela hora da canícula, quando os neurônios ferviam entre os miolos da cabeça redonda e o corpo pedia uma soneca. Sentado numa cadeira com encosto inclinado dormia o cabo sono solto. Roncava feito suíno. E suava enquanto fazia o quimo. Havia comido duas pratadas de feijoada daquelas completas, com rabo e orelha de porco.
ALGO ESTRANHO – Dentro do alojamento havia uma mesa sobre a qual estavam uma máquina de datilografia e alguns papeis espalhados. De uma janela aberta, quem chegava ao alojamento tinha visão total do que se passava lá dentro. Era hora da troca de turno. O soldado da vez chegou para assumir o posto e ao espiar da janela levou baita susto ao ver algo estranho, da cor verde brilhando sobre a máquina de datilografia. Apavorado, em vez de acordar o cabo com o devido cuidado, o soldado reagiu ao que vira sobre a máquina de datilografia aos gritos: “Cabo! Não se mexa. Fica quieto aí. Senão, o senhor é homem morto!”
O cabo acordou sobressaltado e confuso sem saber o que, afinal, acontecia, levantou-se abruptamente da cadeira e disparou a dar ordens aos seus comandados sem ao menos atentar para o que estava sobre a máquina de datilografia.
Na cabeça do cabo um turbilhão paranóico o deixara em pânico, achava estar o reformatório na iminência de uma invasão, e repetia seguidamente: “Nós vamos reagir com coragem; nós vamos reagir…”.
PEDIDO DE REFORÇO – O cabo Efigênio pôs os dois soldados de prontidão. Cada um com o seu respectivo fuzil. E tratou logo de traçar uma estratégia a fim de resistir à suposta invasão. Tentou falar por telefone com o comando de Sete Lagoas para pedir reforço. Tentou várias vezes, mas estava assustado demais e deve ter errado o número, pois ninguém atendia às ligações. Ele, como um energúmeno ia de um lado ao outro feito uma barata tonta.
O cabo imaginava o inimigo armado com canhão e debilmente expunha o temor de o invasor chegar para arrombar as portas e ocupar o reformatório. E não se cansava de dar ordem unidade aos soldados. Eles obedeciam, mas não entendiam o comportamento do cabo, achavam-no estranho. Algo nele parecia não estar bem e podia ter alguma relação com a maneira como fora acordado depois de ter enchido a pança como um frade.
A notícia da invasão imaginada pelo cabo correu semelhante a rastilho de pólvora pelo reformatório criando um clima de tensão. Todos se perguntavam o que afinal acontecia. “Que invasão é essa?” “Cadê o inimigo?” Ninguém tinha a resposta. A falta de informação gerou uma tentativa de rebelião dentro do reformatório. Os jovens considerados delinquentes temiam por suas vidas, mas, enfim, faziam barulho batendo nas camas, nas paredes e grades das celas. Queriam saber contra quem iam ter de lutar. Cada um se armou como pôde, sem perda de tempo. Todos ficaram à espreita e de esguelha.
PÂNICO – Os soldados já estavam em pânico, não de temor da invasão alimentada pelo cabo, e sim de preocupação pela insanidade mental dele. E tomem ordem unida, o cabo ordenava e os dois saíam marchando, cantando em uníssono: “Um, dois, feijão com arroz; três, quatro, carne no prato…”
Diante de tamanha confusão, alguém teve a iniciativa de avisar ao diretor, o professor Geraldo Ramos Fróis, nascido em Grão Mogol. Ele estava em reunião fora do reformatório tratando de assuntos relacionados com os menores ali alojados por determinação judicial.
Fróis, como era chamado pelos companheiros, veio apressado e ao ser informado do acontecido ao cabo compreendeu logo o estado em que ele se mergulhara e tratou de providenciar a ida dele para Sete Lagoas. O cabo opôs resistência, tentou se desvencilhar das pessoas. Na concepção dele tinha de se preparar para resistir à invasão, afinal tratava-se de uma obrigação como militar corajoso, cumpridor do dever, inda mais estando ali para garantir a segurança física de todos.
REFLEXÃO – Confusão sanada com a ida do cabo para Sete Lagoas, os ânimos no reformatório se aquietaram. Em reflexão, todos admitiram ter sido demasiadamente enfático o alerta dado pelo soldado ao cabo por causa de uma cobra cipó enrolada na máquina de datilografia, a poucos centímetros de onde o cabo roncava sentado numa cadeira ao fazer o quimo. Na confusão, a bichinha desaparecera sem deixar sinal.
O diretor do reformatório, ainda sob o impacto do acontecimento, tratou logo de escrever ao comandante do batalhão ao qual o cabo pertencia um pedido de elogio pela “atitude heróica” dele. “Mesmo sob surto psicótico” – escreveu o diretor – “o cabo Efigênio não deixou de cumprir com o dever, imbuído de coragem e dignidade na defesa do reformatório, mesmo sendo uma invasão fruto da imaginação doentia dele”.
*Jornalista e escritor