Dizem que o pai correu, com a criança morta no colo, por mais de dez quarteirões até o hospital. Não o deixaram entrar. Anunciaram a morte, e o pai ficou vagando com o pequeno corpo pelas ruas
13-11-2024 às 09h:00
Ariel Seleme*, diretamente de Beirute para o Diário de Minas
É sempre a mesma coisa – a explosão – o silêncio – e depois os gritos. Choro, pedidos a Deus, nomes, ajuda, socorro.
E assim morreu Adria. Dois anos. Alma de criança. Quando uma criança morre, ela vai para o céu e continua eternamente criança? Sempre me pergunto.
Eternamente criança, sem saber dos horrores dos adultos, do poder da grana. Quanto mais vivo, mais descubro que tudo é só dinheiro.
Os pais me contaram que Adria juntava as mãozinhas e rezava todas as noites. Deus não escutou.
A explosão destruiu o prédio inteiro, e um pedaço da varanda atingiu Adria, que brincava a mais de 500 metros de distância. Não há lugar seguro nesta Beirute.
Dizem que o pai correu, com a criança morta no colo, por mais de dez quarteirões até o hospital.
Não o deixaram entrar; na porta mesmo, anunciaram a morte, e o pai, desnorteado, ficou vagando com o pequeno corpo pelas ruas sem luz de Beirute, que hoje estão mais escuras do que nunca.
Não tinham dinheiro para um caixão, e o corpinho da menina desceu à terra (e subiu aos céus) enrolado nos lençóis coloridos do bercinho.
Amanheceu.
A “vida” continuou. E o poder do dinheiro também.
Imagino a vida desse piloto israelense, cujo trabalho diário é bombardear crianças.
Acredito que ele chega à sua confortável casa à noite e conta à esposa como foi o dia no “escritório”
* Ariel Seleme é escritor e Oficial de Chancelaria. Hoje, na embaixada do Brasil em Beirute