Um novo mandato e o que isso significa para o mundo: uma
análise da retórica e da realidade e as utopias tecnológicas no Dilema da Inteligência Artificial
10-11-2024 às 10h:10 – Rodrigo Marzano Antunes Miranda*
A construção da paz, um anseio universal é um direito fundamental de todos os seres humanos, encontra-se frequentemente distorcida e simplificada em meio ao turbilhão do discurso político. A recente afirmação de Donald Trump, ao declarar que o mundo desfrutava de paz durante seu governo e que seus oponentes o transformaram em um “planeta de guerra”, exemplifica essa manipulação retórica. Uma análise mais profunda e criteriosa revela não apenas a fragilidade dessa narrativa, mas também a necessidade urgente de se construir uma paz genuína, duradoura e abrangente, alicerçada em princípios de cooperação, justiça social, respeito à dignidade humana e à diversidade cultural.
A alegação de Trump, reverberada e amplificada pela máquina de sua campanha presidencial, ancora-se na premissa de que sua postura assertiva, combinada com negociações diretas com líderes controversos, teria engendrado uma era de relativa tranquilidade internacional. Ele cita a ausência de grandes conflitos envolvendo diretamente os Estados Unidos e seus encontros com Kim Jong-un, da Coreia do Norte, como evidências incontestáveis de sua suposta proeza pacifista. No entanto, essa visão míope e superficial ignora nuances cruciais e obscurece um panorama geopolítico bem mais intrincado e interdiciplinar. A paz não se define meramente pela ausência de guerras declaradas entre grandes potências, mas pela construção de um ambiente global onde a cooperação, o diálogo, a justiça social e o desenvolvimento sustentável floresçam, mitigando as raízes profundas da violência e da desigualdade.
Não podemos negar que a busca pela paz mundial tem sido uma constante na história da humanidade, permeando desde tratados diplomáticos até discursos inflamados. Donald Trump e seu apoiador mais proeminente Elon Musk, trouxeram à tona perspectivas distintas, porém igualmente complexas, sobre como alcançar esse ideal, com a tecnologia no centro do debate. Enquanto Trump, em seus discursos, costuma evocar uma visão de paz através da força e do nacionalismo, Musk aposta na inteligência artificial (IA) como uma espécie de “salvadora” da humanidade, um caminho controverso e repleto de desafios éticos e práticos.
A visão de Musk, expressa em entrevista ao Wall Street Journal, é a de uma IA superinteligente que, ao assumir o controle de todos os sistemas de armas, impediria a humanidade de se autodestruir. Sua proposta radical – desarmar a humanidade – parte do pressuposto de que a IA agiria como uma força pacificadora global, priorizando a segurança humana acima de tudo. “Uma maneira de alcançar a paz mundial é tirar todas as armas dos humanos para que eles não possam mais usá-las”, afirmou o bilionário. Contudo, essa visão utópica ignora a complexidade das relações internacionais e a própria natureza humana, além de levantar questões cruciais sobre a concentração de poder em uma entidade artificial. Quem controlaria essa IA? Quais seriam seus valores e critérios de decisão?
Musk, embora otimista quanto ao potencial da IA para a paz, também reconhece os riscos inerentes a essa tecnologia. Ele prevê o surgimento de “guerras de drones” entre nações com capacidades avançadas em IA, e alerta para a possibilidade de manipulação da opinião pública através das redes sociais. Essa dualidade – IA como instrumento de paz e como potencial ameaça – reflete a incerteza que permeia o desenvolvimento dessa tecnologia. A assinatura de Musk em uma carta aberta pedindo a pausa nos experimentos com IA reforça essa preocupação. A carta, assinada por diversas personalidades do setor tecnológico, defende a implementação de protocolos de segurança antes de prosseguir com o desenvolvimento de IAs cada vez mais poderosas, criticando a abordagem “publicar depois corrigir” adotada por algumas empresas.
A comparação entre a retórica de Trump e a visão de Musk sobre a paz revela abordagens diametralmente opostas. Enquanto Trump frequentemente apela para soluções baseadas em demonstrações de força e protecionismo, Musk enxerga na tecnologia, especificamente na IA, o caminho para um futuro pacífico. Entretanto, ambas as visões simplificam a complexa realidade geopolítica e ignoram fatores cruciais como desigualdades sociais, conflitos étnicos e religiosos, e a própria natureza do poder.
A busca pela paz mundial é um objetivo nobre e essencial. No entanto, a crença de que a IA, por si só, pode solucionar esse desafio milenar parece ingênua e potencialmente perigosa. A tecnologia, como qualquer ferramenta, pode ser usada para o bem ou para o mal. O futuro da paz não depende apenas de algoritmos e máquinas, mas sim da capacidade humana de cooperação, diálogo e construção de uma sociedade mais justa e equitativa. A reflexão crítica sobre os discursos utópicos, como o de Musk sobre a IA, é fundamental para evitar que a busca pela paz se transforme em uma distopia tecnológica.
A presidência de Trump, embora desprovida de novas guerras em larga escala com a participação direta dos EUA, foi marcada por um aumento preocupante das tensões globais, com o potencial de desencadear conflitos regionais e internacionais. A retirada unilateral dos Estados Unidos do acordo nuclear com o Irã, o acirramento das disputas comerciais com a China, a postura ambivalente e, por vezes, hostil em relação à OTAN, o desmantelamento de acordos multilaterais e o enfraquecimento de instituições internacionais contribuíram para um clima generalizado de instabilidade, desconfiança e insegurança. A intervenção militar americana na Síria persistiu, e conflitos preexistentes, como o sangrento conflito no Iêmen, intensificaram-se dramaticamente, com consequências humanitárias devastadoras. A construção da paz exige muito mais do que a simples abstenção de conflitos diretos; requer um compromisso ativo, consistente e multilateral com a resolução pacífica de disputas, a promoção de um ambiente internacional cooperativo e o fortalecimento das instituições multilaterais dedicadas à paz e à segurança internacional.
Atribuir a responsabilidade pela guerra na Ucrânia e pelo recente conflito em Israel exclusivamente aos sucessores de Trump configura uma simplificação grosseira e irresponsável da realidade geopolítica. A dinâmica complexa que culminou nesses eventos está enraizada em fatores históricos, políticos, econômicos e sociais profundamente arraigados, que transcendem a influência de um único líder ou de uma única administração. A paz não é um interruptor que se liga e desliga ao sabor da vontade de um governante, mas um processo contínuo, árduo e coletivo de construção que demanda empenho conjunto de todos os atores internacionais, a busca incessante por soluções sustentáveis e o respeito incondicional ao direito internacional e aos direitos humanos.
As promessas vazias de Trump de encerrar esses conflitos, agora reeleito, carecem de qualquer fundamentação sólida e suscitam sérias preocupações na comunidade internacional. Sua abordagem, historicamente baseada em negociações personalistas, ameaças veladas e demonstrações de força bruta, ignora a complexidade das relações internacionais, a importância do multilateralismo na construção da paz e a necessidade de se abordar as causas profundas dos conflitos. A verdadeira paz não se alcança pela imposição da vontade de uma única nação, mas pelo diálogo respeitoso, pela busca paciente de consensos, pelo compromisso inabalável com o direito internacional e pela promoção da justiça social e do desenvolvimento sustentável em todas as nações.
O retorno de Trump ao poder prenuncia um cenário de profunda incerteza e instabilidade para a paz global. Sua retórica nacionalista, isolacionista, protecionista e xenófoba, aliada à imprevisibilidade de suas ações e à tendência a tomar decisões unilaterais, sem consultar aliados e parceiros internacionais, pode exacerbar tensões, minar os esforços de cooperação internacional e aumentar o risco de conflitos regionais e globais. A paz requer liderança responsável, comprometida com a diplomacia, o multilateralismo, a resolução pacífica de controvérsias, o respeito aos direitos humanos e a busca incansável de soluções justas e equitativas para os desafios globais.
A paz não é um mero estado de ausência de guerra, mas um projeto coletivo, abrangente e multidimensional que exige empenho constante, diálogo inclusivo, respeito mútuo, justiça social, desenvolvimento sustentável e a construção de uma cultura de paz em todos os níveis da sociedade. A retórica simplista, reducionista e manipuladora de Trump e Musk sobre a paz representam um desserviço à complexidade dos desafios globais e à necessidade premente de se construir um mundo mais justo, pacífico, próspero e sustentável para todos. A verdadeira paz exige muito mais do que slogans vazios e promessas irrealizáveis; exige um compromisso genuíno e duradouro com a cooperação internacional, a diplomacia preventiva, a resolução pacífica de conflitos, o respeito aos direitos humanos e a construção de um futuro compartilhado, baseado nos princípios da justiça, da igualdade, da solidariedade e da fraternidade universal.
*Doutorando do Programa de pós-graduação em Cidadania e Cidadania, Direitos Humanos, Ética e Política da Faculdade de Filosofia, da Universitat de Barcelona, linha de pesquisa: 101157 Filosofias do Sujeito e da Cultura (UB 2019-), orientado pelo Prof. Dr. Gonçal Mayos Solsona, mestre em Direito pela UFMG (2019), especializado em Formação Política (lato sensu) PUC-RJ (2007), Graduado em Filosofia (bacharel licenciado) PUC-MG (2005). Membro de grupos de pesquisa: o Grupo de Pesquisa dos Seminários Hegelianos (UFMG), Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos Raul Soares (UFMG) e o Grupo internacional de Pesquisa em Cultura, História e Estado (UFMG-UB). Sócio efetivo colaborador da Sociedade Hegel Brasileira. Membro da SOAMAR-MG Sociedade dos Amigos da Marinha em Minas Gerais. Assessor do Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara. Cf. http://lattes.cnpq.br/8767343237031091. E-mail: agendamarzano@gmail.com.