Diante da impermanência e de uma perspectiva de que a vida não basta. O indivíduo nasce e vai sendo moldado e é a arte que permite a compreensão de uma realidade transformadora.
09-11-2024 às 11h:41 – Daniela Rodrigues Machado Vilela*
O Direito é um campo do saber afeto às ciências sociais aplicadas, ou seja, lhe interessa o conhecimento voltado para a vida, para a transformação da práxis. Já a arte, recoloca questões, desconstrói, remodela, instaura e critica culturas. Leva ao pensamento
analítico, abstrato, objetivo e subjetivo.
A arte existe porque nem tudo tem de ter uma explicação racional, porque as coisas não se bastam e assim é a vida. Viver é lidar com a impermanência, com a multiplicidade, com a diferença, com as cores e matizes.
Não dá para viver uma vida “quadradinha” demais, tudo se extravasa, extrapola, surpreende. Tudo é impermanente e rico em horizontes de possibilidades. É irrazoável julgar o mundo pelas lentes dos vieses do próprio olhar.
O indivíduo nasce e vai sendo moldado e é a arte que permite a compreensão de uma realidade transformadora.
As condições materiais se apequenam diante da arte, assim, a criatividade é a palavra-chave do artista. A arte inclui possibilidades.
Mas, também, a arte não se basta, o homem vive de suas condições materiais, tem de garantir sua subsistência, lidar com o seu ganha pão, com seus problemas, limitações.
Há as dores físicas e as da alma. Todos os seres são compostos de aspectos e preocupações materiais e imateriais, objetivas e subjetivas.
A arte sobra, passa das bordas, transborda. Observe-se a pintura de um quadro, tudo começa com o fundo da pintura, a dedicação do artista e seu olhar sobre o mundo, mas a proporção do desenho, o ângulo da tela, o modelo a ser desenhado, tudo conta para o resultado. A compreensão do artista, o que ele almeja expressar, seu universo imaginário, as cores, as tintas, tudo importa. Ah! Existem as possibilidades da mistura de
cores feitas na paleta do artista, que são quase infinitas.
Um bom artista não usa as cores simplesmente em seu estado ordinário como está na bisnaga, as misturas acontecem no tom sobre tom, é na tinta que resta na paleta que se compõem as cores mais elaboradas, mais únicas. Nada pode ser estanque ou linear
demais.
A criatividade reside na possibilidade de ousar, de tentar de novo, de brincar com o novo e o desconhecido. Porém, a destreza no emprego de alguma técnica e a experiência também contam. Não obstante, a capacidade de ousar é fundamental. Ninguém faz nada de grandioso sem um sonho, um projeto e uma tentativa de inovar. Porém, é indispensável compreender que fracassar faz parte do processo.
Ninguém só ganha, o êxito tem a ver com a tentativa, ganha quem tenta e tentar é dar chance para o sim e o não na mesma medida.
De outro lado, o ramo do Direito existe para equacionar conflitos, promover paz social, justiça, propiciar bem-estar às pessoas em sociedade. O Direito pressupõe um conjunto de normas e regras que objetivam regular a vida em sociedade, estabelecer punições para as transgressões sociais. Deveria se ocupar o ramo jurídico também, em igual medida, de premiar as boas condutas com a finalidade de que estas se multiplicassem, assim como aplica punições para inibir condutas em desacordo com o ordenamento jurídico.
Comparativamente, entretanto, o Direito também é arte, pois cabe aos operadores do Direito terem talento. Toda decisão jurídica é também política e artística, se desenha para o caso concreto. O Direito não está isolado da sociedade, ele é uma construção, é
elástico, está situado em um momento histórico, se assenta nos valores daquela sociedade, observa seus aspectos culturais. É construção constante. Não pode ser um projeto absolutamente acabado. Ainda que suas normas existam para conceder segurança jurídica.
Tudo na sociedade está em construção e é impermanente como a própria vida humana.
Assim como a arte, é sujeito a mudanças e ao olhar do artista.
O operador do Direito, o advogado, o professor, o juiz, todos, contam narrativas, descrevem fatos e teorias e os relacionam com as normas para posteriormente propor sínteses. Ao se contar uma narrativa percebe-se o aspecto artístico ali envolvido, pois ao se narrar fatos se lida com o terreno do provisório, dos argumentos em construção, do impermanente, inacabado, com aquilo a ser construído.
Um magistrado, por exemplo, também realiza uma obra de arte quando constrói uma boa sentença e esboça um quadro de justiça aplicada ao caso concreto.
O professor quando teoriza sobre um autor, uma tese, também promove seu desenho artístico, pois enxerga e decodifica o mundo pelo seu olhar particular.
Na arte também é assim. Ainda que se tenha um desenho, uma paisagem a ser observada, tudo depende também do talento do artista, assim como o operador do Direito toma decisões, o artista também o faz. Um quadro conta uma história, uma decisão jurídica na mesma medida reflete a síntese de uma narrativa, esboça a arte de estabelecer o justo, o adequado, o sob medida.
O próprio símbolo da justiça é artístico.
Assim como um quadro nunca está completamente acabado, sempre é possível lhe mudar as cores, retocar o desenho. Com o Direito também existe o inacabado, pois uma decisão boa hoje, pode ser péssima ao ser observada em perspectiva em outro tempo histórico.
O Direito muda, ou deve mudar para melhor atender à sociedade e nisto reside sua beleza. Se a norma já não atende aos fins a que se propôs, os parlamentos devem perceber e criar normativas que reflitam os valores sociais daquele tempo. Seria importante, porém, que o conteúdo de uma norma nova aprovada fosse sempre mais progressista do que a norma que lhe precedeu.
Cabe assim, o desafio de que o Direito sempre reflita crescentemente os valores sociais de seu povo e que suas regras sejam inclusivas, humanas e sempre mais e mais justas.
O Direito necessita da arte, porque a vida despida de utopias, cores e possibilidades não basta. É isto: que a vida tenha arte, cores, brilhos, sombras e luzes, enfim, tudo são possibilidades.
Que a existência não se faça somente no plano do concreto, ainda que o concreto interesse e conte muito. Que a vida seja também um traçado artístico e que cada a um a seu modo desenhe sua obra de arte, que se completa ao final de uma vida, quando cada
qual deixa seu legado, muitas vezes não o desejado, mas o possível, e é isto que faz valer a pena, pois até que as cortinas se fechem, todos estão no palco atuando.
*Doutora, Mestra e Especialista pela UFMG. Atualmente, realiza Estudos Pós-Doutorais pela também UFMG, com financiamento público da FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais). Professora convidada no PPGD-UFMG (Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais). Pesquisadora com ênfase nos estudos sobre o Direito do Trabalho, Filosofia do Direito e Linguagem