Desc: A primeira questão de interpretação deve considerar que esta é uma proposta de auto fixação de limite | Créditos: Divulgação/Agencia Brasil
Essa situação histórica é considerada apenas para que possamos perceber como certas pretensões de reforma no sistema de gastos dos governos mexe com a estrutura social
Rogério Reis Devisate*
O governo federal enviou ao Congresso Nacional proposta de nova mudança no texto constitucional, via PEC – Proposta de Emenda à Constituição, objetivando a revisão dos gastos obrigatórios. Não enviou, ainda, todo o pacote econômico.
Essas pretendidas mudanças merecem detida consideração e análise pelo Parlamento, valendo invocar lições do passado e relembrar que o Luís XVI, o rei da França, pretendia fazer urgentes alterações no sistema de gastos governamentais e contava, para isso, com o seu Ministro das Finanças, Jacques Necker. Todavia, este Ministro, diante do quadro que se lhe apresentava, percebeu que já não dava para sanear os combalidos cofres franceses sem que se fizessem mudanças profundas. Em verdade, a situação era tão grave que seriam insuficientes pequenos cortes nas despesas e não havia mais como aumentar receitas e tributos, diante da sobrecarga de impostos e taxas sobre o povo, que também sofria com a carestia e a escassez de alimentos, decorrentes de safras ruins e barreiras protecionistas na comercialização internacional de grãos.
Como consequência, o Ministro Necker influenciou o rei Luís XVI a convocar os Estados Gerais, um tipo de assembleia complexa e composta pelo clero (a parte religiosa), a nobreza (então em decadência) e o terceiro estado (burguesia e povo). Ocorre que os Estados Gerais não eram convocados desde 1614, ou seja, há cerca de 174 anos e houve urgência e despreparo na sua organização. A coisa saiu do controle e seguiu os rumos conhecidos, com o início da Revolução Francesa e tudo o que ocasionou, como a decapitação do Rei Luís XVI e da Rainha Maria Antonieta, os anos de Terror, o fim do Antigo Regime e tantas mudanças que até deu início à Idade Contemporânea e a gestação para a chegada de Napoleão ao poder.
Essa situação histórica é considerada apenas para que possamos perceber como certas pretensões de reforma no sistema de gastos dos governos mexe com a estrutura social, sendo, portanto, fundamental o papel do Congresso Nacional no desempenho do seu elevado papel constitucional de freios e contrapesos.
Voltando ao pretendido programa de reforma tributária, ao menos nessa parte já enviada pelo governo federal ao Congresso Nacional, busca-se rever gastos e fazer com que as despesas obrigatórias caibam no arcabouço fiscal, auto fixando um limite em setenta por cento (70%) do crescimento real da arrecadação do ano anterior.
A primeira questão de interpretação deve considerar que esta é uma proposta de auto fixação de limite de gastos. Ora, autolimitação é restrição autoimposta, o que só se alcança com rigor no controle dos próprios atos. Isso pode soar como a mais elevada virtude ou equivaler à uma criança prometendo que não vai mais gastar toda a mesada com guloseimas.
Essa autolimitação soa curiosa, notadamente diante de gestão governamental em meio de mandato e possivelmente em planejamento para a próxima eleição presidencial. É crível que em tempos de véspera de pleito eleitoral fica difícil aceitar que o governo cortaria despesas ou gastos significativos ou que envolvessem saúde, educação, segurança e programas como o bolsa família e o Fies. Para tanto, basta imaginar anúncio governamental dizendo que diminuiu ou diminuirá os investimentos nessas áreas para se perceber a repercussão negativa na eleição presidencial.
Avançando, é preciso que se compreenda que há os atos de governo e os atos de Estado e, consequentemente, há gastos que diferem da mera realização das despesas públicas já fixadas, segundo os parâmetros constitucionais e legais, estes fixados pela lei orçamentária anual e segundo o plano plurianual de investimentos (um tipo de planejamento de longo prazo e que se executa por lei). Tudo o que se fez a respeito nos anos e anos passados repercute, portanto, no presente e no futuro, motivo pelo qual a modificação dos gastos obrigatórios pode significar a sua redução ou apenas a possibilidade de se os reduzir para substituição por outros. E, se há tanta urgência, por qual motivo não se agiu antes? De qualquer modo, o Congresso deveria receber todo o pacote de uma vez para que o conjunto pudesse ser avaliado, contemporâneo e integralmente.
Noutro ponto, ao liberar o teto de gastos, a questão pode refletir no aumento de despesas obrigatórias com saúde e educação, que não podem diminuir, já que são fixadas segundo o patamar do ano anterior.
Não deixa de ser sinal relevante dessa complexa situação o recente aumento significativo da cotação do Dólar. A moeda americana chegou a R$ 5,76, o maior patamar em anos. Se o governo alvitra obter maior confiança do mercado com a proposta de reforma que inicia, o aumento do dólar parece significar que isso, por ora, não ocorre.
A insegurança jurídica é um viés dessas oscilações, acompanhada da insegurança econômica. Esta pode decorrer de especulação e da volatilidade do mercado tanto quanto da instabilidade internacional ou interna, envolvendo exatamente a auto postura de limitação dos gastos e da sua atuação governamental. Envolve credibilidade. Aliás, por se falar em questões internacionais, há dias mencionamos e cabe repetir, que “o FMI – Fundo Monetário Internacional piorou a sua projeção sobre a dívida nacional do Brasil, apontando que deve chegar a 87,6% em 2024 e a 97,6% em 2029 (ou seja, quase 100%)!”
A questão é que o quadro fiscal e as contas públicas caminham para cenários piores do que o vivenciado em plena pandemia, quando podemos dizer que o mundo parou por alguns meses – não os gastos. Fato é que o nosso endividamento aumenta e que a economia não aceita mágica, como exemplifica muito bem a política econômica do Encilhamento, conduzida por Rui Barbosa, no início do Brasil republicano – que funcionou como verdadeira bolha de crédito circulante.
Por fim, ao que parece, se há pretensão de se modificar gastos e tetos e impor-se auto limites, cada parte do todo deve ser minuciosamente avaliada pelo Congresso Nacional, para que o resultado não fuja ao controle e não nos apresente riscos imprevisíveis e maiores – como os que rapidamente mencionamos e que ocorreram em França e no início da República no Brasil – e que, também, não abra espaço para o surgimento de inflação que possa, como bola de neve, crescer e nos levar a monstruosa e lastimável situação de décadas passadas
* Rogério Reis Devisate é advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilos e Gafanhotos: Grilagem e Poder. Co-coordenador da obra Regularização Fundiária Experiências Regionais, publicada pelo Senado Federal.