A primeira vez que vi um representante dessa espécie foi na Urca, Rio de Janeiro, na pista de caminhada Cláudio Coutinho, ao lado da Praia Vermelha. Achei um máximo. Devia ter uns 14 anos
Inacreditável! O dia começou assim hoje. Acordo para trabalhar, tomo banho, escovo os dentes e vou à cozinha preparar o café matinal. Até aí, nada de extraordinário. Mas algo estranho me chama atenção. Sobre a pia, duas pequenas pelotas de coloração marrom e textura pastosa. Olho para o lado e vejo a porta da geladeira repleta de manchas pretas.
“Entrou gente no meu apartamento?!” Corri para averiguar a porta. Tudo intocável.
“Rato?! Mas cocô de rato não tem esse formato…”
“Hummm… O que pode ser?”
“Já está na hora de eu sair de casa. Chegarei muito atrasado ao trabalho”.
Vistorio embaixo da geladeira, dentro dos armários, guarda-roupa, banheiro, lixeira. Nada. Absolutamente nada. Volto para a cozinha. Observo a fruteira quase vazia em cima da geladeira. Lá está minha última maçã. Surpreendentemente, comida pela metade. Não é possível!
Vou para o quarto. Ouço um estrépito. O coração bate forte e descompassado.
Calma! É o vizinho de cima fazendo barulho.
Lembro de olhar o espaço entre a lateral da cama e a parede. Observo um vulto cinza. “Uma bola de meia caída ali…” Penso. Olho novamente.
Mas meia não se movimenta sozinha. Miro novamente o vulto cinza. Posso, agora, certificar-me do que se trata. É um ser de rabo comprido e peludo que me encara com seus pequenos olhos arregalados. Não posso acreditar no que vejo.
É um animal familiar. Quer dizer, tornou-se familiar depois de certo tempo em minha vida. A primeira vez que vi um representante dessa espécie foi na Urca, Rio de Janeiro, na pista de caminhada Cláudio Coutinho, ao lado da Praia Vermelha. Achei um máximo. Devia ter uns 14 anos. Cheguei contando a novidade para todo mundo lá em casa. Como a gente se encanta com o novo, o diferente, né?! Depois, encontrei vários deles no parque do Museu Mariano Procópio, onde trabalho há anos. Adoro observar seu comportamento nos muros e nas árvores. Já tirei várias fotos deles. Morria de vontade de segurá-los com as mãos por alguns instantes. Mas eles fogem. Sentem medo dos humanos. Depois de um tempo, eles começaram a aparecer também entre as árvores do quintal lá do sítio da minha família, em Simão Pereira. São tantos deles, que se tornaram banais. Todo ano se fartam de comer as nossas jabuticabas. Pulam de galho em galho com uma destreza sem igual. Meu pai sempre diz para não lhes dar muita “trela”, pois ficam “sem vergonha” e invadem a casa para roubar comida. Reinando livres, leves, soltos e alimentados com os frutos que as árvores têm para lhes oferecer, nunca vi nenhum deles sequer dentro da minha casa, na roça. O desejo de pegar um deles e senti-los em minhas mãos nunca se concretizou, portanto.
O “ser” que me encara, acuado, no vão entre a parede e a lateral da minha cama, é um perfeito representante da espécie que conheci no Rio de Janeiro, depois no Museu Mariano Procópio e, finalmente, no quintal do sítio.
Acuado e com a cara suja pela prova do crime (migalhas de maçã), o bicho dá um pulo e se enfia atrás de minha mesa de estudo. Tento agarrá-lo, mas sua esperteza é bem maior do que a minha. Avanço. O bicho pula, sai correndo e se agarra na persiana da janela do meu quarto. E agora?
Abro a janela, que dá de frente para a Rio Branco. O bicho sai. Apoia-se na parte externa do parapeito. Em seguida, pula de janela em janela, descendo o prédio pela fachada frontal.
O bicho, pessoal, é um mico. Perdido e desterritorializado na selva de pedra que se tornou Juiz de Fora, ele adentrou minha cozinha pela janela que dá acesso à área de ventilação do prédio. Faminto e desesperado, atacou o fruto proibido. E ainda se alojou ao lado da minha cama. Depois, sai correndo pela janela, sem dar tempo de chamar algum profissional do meio ambiente para socorrê-lo e colocá-lo junto aos seus.
Alguma área verde do Granbery devia ser seu habitat. Alguma construtora, na sede voraz da especulação imobiliária, o colocou na sarjeta. Por acaso, dentre as centenas de apartamentos do centro da cidade, escolheu o meu para pedir abrigo. Talvez quisesse ir para o Museu ou para o sítio junto comigo, à procura de ar puro.
Saí de casa atrasado, preocupado com o destino do meu amigo mico. Gostaria muito de vê-lo de volta à natureza. O desespero, meu e dele, porém, levou-o a aventurar-se na selva habitada pela espécie mais mesquinha e perigosa do planeta, que vive sobre quatro rodas, dominada por uma plaquinha luminosa e imbecilizante, intoxicada/envenenada com o próprio veneno.
E, nessa briga contra a natureza, o ser humano nunca conseguirá fugir do mico. Quanto mais a invadimos e a ameaçamos, mais ela nos invade agressivamente. Não paguemos para ver o triste fim dessa horrenda humanidade capitalista.
* Sérgio Augusto Vicente é professor de História e historiador. Graduado, Mestre e Doutorando em História pelo PPGHIS/UFJF. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora (MG)