Sistema de canalização e adutoras elevatórias que levou água ao sertão brasileiro - créditos: divulgação
24-12-2025 às 14h12
Samuel Arruda*
Levar água para o sertão nordestino exigiu uma das maiores obras de engenharia do mundo e se tornou um marco de como o Estado brasileiro pode intervir para garantir o direito básico à água. O Projeto de Integração do Rio São Francisco não se resume a cavar canais: ele simboliza a capacidade de vencer limites naturais, inclusive a gravidade. Para que a água “subisse” e atravessasse o relevo árido do Nordeste, foram construídas estações de bombeamento monumentais, capazes de elevar o nível do rio em até 200 metros — o equivalente a um edifício de cerca de 60 andares. Ao longo de mais de 477 quilômetros de canais, túneis e aquedutos, a água percorre um caminho complexo até alcançar 390 municípios em quatro estados, transformando uma realidade historicamente marcada pela seca extrema.
Essa obra faraônica garante segurança hídrica para aproximadamente 12 milhões de pessoas que, por décadas, dependeram de soluções precárias como caminhões-pipa. Além do porte físico, o projeto se destaca pelo uso de tecnologia avançada para monitoramento da vazão, controle de perdas e preservação da chamada vazão ecológica do “Velho Chico”, demonstrando que é possível conciliar grandes intervenções com critérios ambientais. Trata-se de um exemplo concreto de planejamento de longo prazo, no qual o investimento público estruturante altera profundamente as condições de vida de uma população inteira.
Quando se observa essa experiência à luz da crise hídrica no Vale do Jequitinhonha, o contraste é inevitável. Embora o Vale também abrigue mais de 1 milhão de habitantes e enfrente escassez crônica de água, ele nunca recebeu um projeto de envergadura proporcionalmente comparável. Enquanto o semiárido nordestino foi contemplado com uma solução integrada e permanente, o Jequitinhonha permanece dependente de ações pontuais, muitas vezes emergenciais, insuficientes para garantir segurança hídrica contínua. Essa diferença revela não apenas desafios técnicos, mas sobretudo escolhas políticas.
A comparação torna-se ainda mais urgente diante da expansão da mineração de lítio na região do Vale do Jequitinhonha. Assim como o agronegócio e a indústria demandam água em outras partes do país, a mineração consome volumes expressivos desse recurso, pressionando ainda mais um sistema já frágil. No entanto, diferentemente do que ocorreu no Nordeste — onde grandes obras priorizaram o consumo humano —, no Vale corre-se o risco de que interesses econômicos se sobreponham às necessidades básicas da população local.
O Projeto de Integração do Rio São Francisco prova que o Brasil tem capacidade técnica, financeira e intelectual para enfrentar desafios hídricos extremos. Diante disso, torna-se legítimo questionar: por que uma região historicamente pobre, socialmente vulnerável e agora estratégica para a economia mineral não recebe o mesmo nível de atenção? Garantir água ao Vale do Jequitinhonha é tão vital quanto foi levar água ao sertão nordestino. Trata-se de assegurar dignidade, saúde e futuro, reafirmando que o desenvolvimento não pode ocorrer às custas da sobrevivência de quem sempre viveu com tão pouco.
*Samuel Arruda é jornalista e articulista

